Principais Festividades Tradicionais da Comunidade Macaense
Alexandra Sofia Rangel
Investigadora académica, autora do livro
“Filhos da Terra – A Comunidade Macaense, Ontem e Hoje”
Dia 10 de Junho, dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, celebrado em Macau
A forma como uma comunidade se organiza e participa colectivamente em festas e festividades, revivendo as suas tradições ou assinalando datas com especial significado, constitui também um elemento identitário que importa assinalar.
A comunidade macaense habituou-se, ao longo da sua história, a participar muito activamente em festividades, quer portuguesas, quer chinesas. Ainda hoje, quase duas décadas depois da transferência do exercício da soberania, em Dezembro de 1999, é assim, tanto no território, como na diáspora macaense.
Os feriados oficiais incluíam, na vigência da administração portuguesa, datas respeitantes a grandes acontecimentos nacionais portugueses, festividades tradicionais chinesas e também festas da Igreja Católica. Após a transição, foram eliminados os feriados respeitantes a altos momentos históricos portugueses, tendo sido, porém, mantidas algumas das festas religiosas cristãs, que têm especial significado para a comunidade macaense, como a Páscoa, o Dia da Imaculada Conceição e o Natal.
Em outros tempos, sensivelmente até meados do século XX, também foi amplamente participado, pela comunidade macaense, o Carnaval, o que tornou a cidade de Macau diferente das outras daquela área geográfica:
Em épocas passadas, Macau ria a bandeiras despregadas. Vestia-se de fantasia e andava pelas ruas, cantando, galhofando, palhaçando, em gestos e atitudes de truão.
Baile de Carnaval nos anos 50 do século XX.
Os sons alegres das tunas e os risos festivos do rapazio explodiam em melodias ensaiadas durante muitas semanas e em gargalhadas estridentes, provocadas muitas vezes pela visão das máscaras, engraçadas e originais.
(…)
As festas carnavalescas punham uma nota viva, interessante e chistosa no viver pacato e monótono de Macau (Machado 2002: 147-150).
As festividades chinesas que mais atraem os macaenses são o Ano Novo Chinês, o Festival do Barco Dragão e o Festival de Outono. Para os chineses de Macau, são também importantes o Ching Ming (Dia do Culto dos Antepassados), o Dia do Buda e o Chong Yeung (Dia dos Antepassados), sendo de registar que o culto dos antepassados é celebrado duas vezes por ano. São festas móveis segundo o calendário lunar.
Apesar de já não serem feriados oficiais, duas datas continuam a ter o maior significado para a comunidade macaense: o 10 de Junho, Dia de Portugal, e o 24 de Junho, antigo Dia da Cidade de Macau, a data em que a população de Macau se defendeu com sucesso do último ataque dos holandeses, em 1622. As novas autoridades escolheram para Dia da Região Administrativa Especial de Macau o dia 20 de Dezembro, data do seu estabelecimento, cujas celebrações contam também com o envolvimento de instituições da comunidade macaense.
Para este estudo, foram identificadas quatro datas particularmente relevantes para os macaenses: o Ano Novo Chinês, o 10 de Junho, o 24 de Junho e o Natal.
Baile de Carnaval nos anos 50 do século XX.
Ano Novo Chinês
Devido ao grande entusiasmo com que é celebrado pelo grupo dominante da população de Macau, o Ano Novo Chinês faz parte da vida de qualquer macaense. Sendo a maior de todas as festas realizadas na China e na vasta diáspora chinesa, também os macaenses a comemoram, mesmo quando residentes no estrangeiro. É impossível sair à rua nesta altura sem assistir às celebrações, cheias de cor e movimento, que incluem danças do leão e do dragão, exposições artísticas e de flores, banquetes, espectáculos musicais e a queima quase incessante de panchões.
Uma tradição do Ano Novo Chinês é a oferta de lai-si, pequenos envelopes vermelhos contendo dinheiro, que são dados por pais a filhos, patrões a empregados e casados a solteiros. Os macaenses também participam neste costume, e a entrega de lai-si é tão popular entre eles que costumam oferecê-los nos aniversários dos filhos, netos e sobrinhos. Os lai-si têm, muitas vezes, decorações lindíssimas, com desenhos muito diversificados, tornando-se em objectos muito apreciados, sendo mesmo coleccionados por crianças portuguesas e de outras nacionalidades, atraídas pelo seu exotismo.
As donas de casa, chinesas e macaenses, compram ramos de pessegueiro e narcisos para decorar a casa, assim como arranjos florais elaborados, imitações de panchões e papéis e dísticos vermelhos para afugentar os maus espíritos.
Outra tradição é jogar nos casinos, em busca da sorte neste período auspicioso para todos. Muitos habitantes e turistas chineses vindos de Hong Kong, Taiwan ou do continente chinês enchem estes locais de jogos de fortuna e azar, e dão à cidade uma imagem de alegria e prosperidade económica, participando, activamente, nos festejos e adquirindo as guloseimas, flores, roupas, brinquedos e outros artigos habitualmente consumidos nesta ocasião. Mesmo os menos afortunados procuram usar roupas novas e integram-se completamente neste ambiente de festa.
Exemplo de “lai-si”.
Nesta altura do ano também os serviços, os escritórios, as obras públicas e muitas casas comerciais cessam completamente a actividade durante vários dias. Até os pescadores, com as suas embarcações embandeiradas, recolhem ao porto de Macau e vêm para terra.
Outro hábito salutar é o pagamento das dívidas até à véspera do Ano Novo Lunar. Nenhum homem de negócios, por uma superstição que a todos favorece, transfere para depois dessa data qualquer das suas dívidas, o que é, de facto, muito benéfico para a economia local.
Cada novo ano é referido a um animal do zodíaco chinês. Leonel Barros, em Macau – Coisas da Terra e do Céu, explica assim esta lenda:
Uma lenda muito antiga contava que Buda resolveu chamar à sua presença todas as espécies de animais que existiam na Terra, a fim de lhes dar conselhos no que dizia respeito ao modo como teriam que lidar com os homens.
De todos os animais existentes na Terra só compareceram doze: o tigre, o dragão, o cavalo, o carneiro, o galo, a serpente, o rato, o boi, o coelho, o macaco, o cão, e o porco.
Grato com a presença desses animais, Buda determinou que para cada ano fosse designado um dos doze animais. Assim, cada ano passou a ser conhecido por um dos doze animais do zodíaco chinês divididos em dois grupos, em conformidade com os elementos da teoria dualística da criação, base da concepção chinesa do Universo (...) Pertencem ao ramo Yang – elemento viril e activo – o tigre, o dragão, o cavalo, o carneiro, o galo, e a serpente (…) No ramo Ying – elemento feminino passivo – englobam-se o rato, o boi, o coelho, o macaco, o cão, e o porco (Barros 1999: 73-74).
Com toda a sua carga simbólica e o seu significado, esta é e será, provavelmente, sempre a maior festa chinesa, que nem regimes mais autoritários conseguiram suprimir ou limitar:
São tradições milenares que resistem ao tempo e às mudanças, não se deixando vencer por vanguardismos de qualquer cor política ou por modas, sempre passageiras. Na China, nem o regime comunista nas suas mais demolidoras fases conseguiu modificar hábitos e ritos de antanho ligados às festividades do Ano Novo. Chamando-lhe Festa da Primavera ou dando-lhe outro nome, essas festividades continuaram no dia-a-dia da vida do povo chinês e os altos dirigentes políticos voltaram a conviver em lautos banquetes nesses dias de festa, que acabaram por ser oficialmente aceites como comemorativos do Ano Novo Lunar. E, não obstante as grandes transformações verificadas, esta é e será sempre, também, a maior de todas as festas da população de Macau (Rangel 2009: 50).
10 de Junho
O busto de Camões no jardim dedicado ao Poeta.
O Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas tinha no tempo da administração portuguesa um significado especial para os macaenses, pois, como refere Henrique de Senna Fernandes,
Camões, no coração dos macaenses, foi sempre o símbolo da Pátria distante. Esta convicção não era apenas alimentada pela romagem anual à Gruta, onde diante do Busto do Poeta desfilaram gerações de estudantes. (…) era costume presentear-se a todo aquele que ingressasse, pela primeira vez, no Liceu, com um volume de “Os Lusíadas”. Eu recebi o meu. Na mesma época, quando as escolas primárias eram da responsabilidade do Leal Senado da Câmara, era costume premiar o melhor aluno finalista, em cerimónia simples mas cheia de significado. O prémio que lhe depositavam nas mãos, era também um volume de “Os Lusíadas” (Fernandes 1999: 60).
Esse significado estendeu-se para além da transição. De facto, Luís de Camões representou para sucessivas gerações de macaenses a sua ligação a Portugal, da qual nunca se esqueceram apesar da enorme distância entre Macau e a então Metrópole. Nos dias que correm, mesmo havendo facilidade em viajar de Macau para Portugal, Camões continua a simbolizar para muitos de nós as nossas origens, o nosso passado e o país que é a nossa segunda casa.
Luís de Camões tem um grande jardim em Macau com o seu nome, onde se situa a famosa Gruta de Camões, contendo o seu busto. A primeira romagem à Gruta foi feita em 1923 por iniciativa do então Governador de Macau, Rodrigo Rodrigues, “(…) um patriota exaltado e fervoroso cultor de Camões (…) que logo no primeiro ano da sua chegada a Macau convidou as escolas e as forças armadas para irem à Gruta homenagear o épico. (…) foi ele que enalteceu o vulto imortal do poeta e a sua emoção foi tão profunda que desatou a chorar, tendo de interromper o discurso” (Teixeira 1999a: 67-68). Ainda hoje, todos os anos, instituições de matriz portuguesa, nas quais se incluem associações macaenses, e escolas de Macau, incluindo, como não podia deixar de ser, a Escola Portuguesa de Macau e o Jardim de Infância D. José da Costa Nunes, continuam a participar na cerimónia do 10 de Junho, desfilando perante o busto do maior poeta português e colocando flores no respectivo pedestal. Alunos da Escola Portuguesa de Macau e da Escola Secundária Luís Gonzaga Gomes declamam sonetos de Camões em, respectivamente, português e cantonense e grupos de danças e cantares actuam no local.
Reza a tradição que Camões terá escrito parte de Os Lusíadas nesta Gruta. No entanto, a partir do século XIX, foram-se levantando vozes contrárias, pondo em causa até a passagem de Camões por Macau. Mas o Padre Manuel Teixeira, respeitado historiador que viveu em Macau, comenta que “Os que negam a estada de Camões em Macau baseiam-se no argumento do silêncio do poeta sobre Macau, alegando que Macau não existia. Se isto fosse verdade, tudo aquilo que ele não mencionaria não existiria” (Teixeira 1999b: 21). Nas suas obras A Gruta de Camões em Macau (Teixeira 1999a) e Camões esteve em Macau (Teixeira 1999b) ele refuta essas opiniões, apresentando factos e excertos de documentos que deitam por terra os argumentos contrários à estada de Camões em Macau, o que não foi difícil, uma vez que os textos dos contestadores estavam repletos de erros históricos, erros que eles foram copiando uns dos outros, demonstrando uma ignorância sobre os primórdios da história de Macau (Teixeira 1999b: 65-78).
Contudo, o que interessa aos macaenses não é a polémica criada à volta da estada de Camões em Macau, mas sim, como já foi referido atrás, o que o poeta representa para a comunidade:
Macau só tem que se orgulhar de ter sido a primeira possessão ultramarina portuguesa a erigir um busto a Camões. Antes mesmo da capital do Império!
Porque se não estivera em corpo, o espírito do Poeta, em cá chegando, nunca de cá saiu! Por aqui ficou a impregnar cada um dos descendentes dos portugueses que partiram em demanda de honra e proveito, na Índia e mais além, mesmo muito mais além da Taprobana…
E disso, todas as gentes de Macau, de espírito aberto e ecuménico, neste pluriculturalismo que está na sua génese, devem estar orgulhosas. Porque, na obra de Camões, já encontramos a concepção globalista do mundo baseada no encontro entre duas culturas diferentes, que é justamente o que está na base do estabelecimento de Macau. Camões é a chama que nos une, é o símbolo da simbiose do Ocidente com o Oriente (Ribeiro 2007: 26)
Um busto de Camões já se encontrava na Gruta em 1794, pois é mencionado por Sir George Staunton no diário de viagem da Embaixada de Lord Macartney à China em 1792-1794 (Teixeira 1999a: 67).
Dito isto, vem a propósito relembrar algumas das referências que um dos maiores escritores portugueses, dos raros que tiveram contacto directo com o Extremo Oriente, Camilo Pessanha, fez à Gruta de Camões e à permanência do vate em Macau, em “Macau e a Gruta de Camões”, incluído na compilação Camões nas Paragens Orientais – Textos por Camilo Pessanha e Venceslau de Morais:
Quanto à grandeza gigantesca de Camões, e à da assombrosa epopeia marítima que culminou na formação do vasto império português do século XVI, estão acima de qualquer discussão. Resta apenas ponderar se Macau, esta exígua península portuguesa do Mar da China ligada ao distrito chinês de Heong-Shan, tem qualidades que a recomendem para assim andar associada à memória dessa epopeia e à biografia do poeta sublime que a cantou.
Ora essas qualidades tem-nas Macau como nenhum outro ponto do Globo. Macau é o mais remoto padrão da estupenda actividade portuguesa no Oriente nesses tempos gloriosos. (…)
É a Gruta de Camões (…) esse lugar sobre todos prestigioso dedicado ao culto de Camões, que é também o culto da Pátria. Culto e prestígio que não podem extinguir-se enquanto houver portugueses; e enquanto não se extinguem, há-de ser verdade intuitiva, superior a todas as investigações históricas, que o maior génio da raça lusitana sofreu, amou, meditou, em Macau (…) (Pessanha 1927: 13-15).
24 de Junho
Macau foi sempre um ponto estratégico nas rotas comerciais, o que gerou a cobiça por parte dos holandeses no século XVII, como afirma Austin Coates:
Os Holandeses cedo chegaram à conclusão de que o lucro do comércio com o Japão dependia da quantidade de seda chinesa disponível, e cujo monopólio Macau detinha, satisfazendo amplamente a insaciável procura japonesa. Assim, restava-lhes apenas a seda que iam obtendo dos piratas chineses, a intervalos irregulares, e sempre após longas e difíceis negociações.
Gerou-se, pois, no seio dos Holandeses um crescente movimento de apoio àqueles que propunham a conquista de Macau pela força (Coates 1991: 76).
Em período de União das Coroas da Península Ibérica, os inimigos de Espanha passaram a ser os mesmos dos portugueses e, estando Filipe III de Espanha “(…) naturalmente mais interessado em salvaguardar as colónias fundadas pelos Espanhóis que em dar resposta aos pedidos de reforços lançados pelos Portugueses” (Coates 1991: 73), nada fez para contestar a constituição de Companhias das Índias Orientais por parte dos ingleses e holandeses, estes últimos especialmente interessados nas colónias portuguesas.
A primeira investida dos holandeses deu-se em 1601. Como a cidade ainda não estava fortificada, entraram facilmente, mas a população rapidamente os deteve, acabando esta primeira tentativa de ocupação com o enforcamento de dezoito holandeses e a retirada dos seus barcos (Coates 1991: 74). Seguiram-se mais tentativas de tomar Macau, mas as hostilidades terminaram temporariamente com o Tratado de Antuérpia em 1609, decretando tréguas entre a Holanda e a Espanha (e, por consequência, Portugal). Neste período foi desenvolvido um plano de defesa em Macau e construíram-se fortificações militares:
É desta época que datam os fortes da colina da Barra, à entrada do Porto Interior (a sul da península), bem como outros dois fortins, construídos nas duas extremidades da Praia Grande, para controlo do Porto Exterior.
Os preparativos da cidade mobilizaram toda a população, incluindo os Jesuítas. Com efeito, toda a área ocupada pelos seus jardins e edifícios no cume do monte foi integralmente coberta por espessa muralha (que ainda hoje ali se ergue), fazendo-se a comunicação com o Colégio e a Igreja de São Paulo, que lhe eram adjacentes, por uma passagem secreta.
Foi também estabelecida uma fundição, cujo mestre era Manuel Bocarro, peça importante (se bem que ignorada) na transformação das tradições bélicas do Extremo Oriente, com os seus magníficos canhões (comprados por todos os países da região), bem como com outros artefactos (os melhores do género produzidos em toda a Ásia) (Coates 1991: 75-76).
Todos estes preparativos provaram-se essenciais, já que, findo o período de tréguas, os holandeses atacaram Macau outra vez em 1622. Os confrontos tiveram início em 23 de Junho, com fortes bombardeamentos sobre a cidade, que se encontrava desguarnecida, pois a maioria dos soldados estava fora a auxiliar tropas chinesas. Por consequência, “(…) só cerca de mil pessoas se encontravam na cidade, e, dessas, apenas oitenta europeus estariam aptos a pegar em armas” (Coates 1991: 77).
A batalha continuou no dia seguinte, 24 de Junho, dia de São João Baptista, com mais bombardeamentos e o desembarque dos holandeses. Austin Coates relata:
(…) a escassa população de Macau – leigos e clérigos, homens livres e escravos – ergueu-se para a defender. Os Jesuítas rapidamente desalojaram os canhões dos seus postigos originais, posicionando-os ao longo da muralha norte do seu seminário-fortaleza. Refira-se a propósito que os padres jesuítas eram peritos em balística, habituados que estavam a lidar com a corte de Pequim (…).
Neste embate brutal era grande a escassez de armas e homens que as manejassem, especialmente numa ocasião em que a defesa mais eficaz residia na intensidade e na frequência do fogo de artilharia. Mas tal deficiência veio a ser compensada pela pontaria certeira de um padre-soldado. De facto, quando o inimigo se acercava já do sopé do Monte, o padre Rho começou a disparar o seu canhão, cujas balas caíram certeiras sobre os carroções que transportavam a pólvora da força holandesa, que rebentaram com estrondosa explosão. (…)
O grito de batalha lusitano, “Por Sant’Iago!”, brotou a certa altura de um qualquer peito, sendo um segundo depois gritado em uníssono por todas as gargantas, como em uníssono avançou a multidão, inspirada por uma força comum, caindo de todos os lados sobre o invasor holandês. (…) A coberto da mais intensa fuzilaria, a vanguarda portuguesa enfrentava já o inimigo em luta corpo a corpo. (…) O comandante da força invasora foi o primeiro a cair, após o que o resto das tropas holandesas, perdendo de vista o seu líder, vacilaram por completo. Momentos depois, tomados de pânico, batiam em retirada, desfazendo-se das armas, acossados pelos Macaenses, que os perseguiam pelos campos trespassando com as espadas tantos quantos podiam. Uma mulher africana, vestida de homem, matou dois deles com uma forquilha (Coates 1991: 77-78).
Após a estrondosa derrota dos holandeses, decidiu-se comemorar todos os anos o Dia de São João Baptista como agradecimento e recordação deste feito importante na história de Macau, algo que foi feito ao longo de quase quatro séculos, celebrado como o Dia de Macau até 1999. No entanto, apesar de já não ser feriado, os macaenses não se esquecem desta data e, todos os anos, através das suas associações com sede no território ou no estrangeiro, continuam a comemorar este dia com uma missa e um chá gordo, mantendo em pleno o seu significado para a comunidade.
Há datas que são marcos fundamentais de qualquer comunidade. O 24 de Junho é uma data inapagável da memória macaense: “A vitória de 24 de Junho de 1622, sobre os invasores holandeses, marca um dos mais brilhantes feitos do povo de Macau e um imorredoiro padrão nas tradições desta Cidade do Nome de Deus” (Machado 2002: 137).
Sendo uma data específica relacionada com a história de Macau, é opinião generalizada na população que não deveria ter sido retirada dos calendários oficiais após a transição de administração.
Monumento que assinala a vitória sobre os holandeses em 1622.
Natal
Convívio de Natal.
A comunidade macaense é tradicionalmente católica, uma herança dos pais portugueses de tempos de outrora, e vive numa cidade repleta de igrejas e capelas, algumas existentes desde os primeiros tempos do estabelecimento de Macau. Renelde da Silva justifica a religiosidade dos macaenses da seguinte forma:
Face à sua pequenez numérica num ambiente de omnipotência política da vizinhança e do relativo abandono da Metrópole, os macaenses aprenderam a contar consigo próprios, para enfrentar as situações difíceis, por que tiveram de passar.
Para além das suas forças, só podiam contar com Deus. Daí a sua religiosidade (Silva 2001: 94).
Como para muitos outros católicos, para os macaenses, o Natal é uma festividade muito importante e amplamente participada. Mas nunca foi só uma festa de família, pois foi sempre vivido também com intensidade em estabelecimentos de ensino, em organismos associativos, em empresas, em serviços públicos e em instituições de solidariedade social (Rangel 2007: 319).
O escritor macaense Henrique de Senna Fernandes descreve assim o Natal no seio da sua família:
O Dezembro era um mês festivo. O primeiro domingo era dedicado à Primeira Comunhão, uma cerimónia tocante na Sé Catedral (…).
Logo a seguir, vinham os preparativos para o Natal, as donas de casa atarefadas na cozinha, na confecção do aluar, dos coscorões, empadas e fartes, os costumados doces da época. Encomendavam-se o peru e outras carnes de Hong Kong e, em casa do meu Avô materno, não podia faltar o empadão gelatinado de peças de caça, o famoso “game-pie” do Lane Crawford. Encomendavam-se também à Loja de Omar Moosa, mais conhecido por Kassam, figura prestigiosa e mais destacada da larga comunidade “Moura” de Macau (…).
A “missa do galo” desse tempo, o jantar de Natal, o deslumbramento dos brinquedos, a mesa repleta de iguarias, onde se comia à tripa forra, a alacridade e as gargalhadas dos familiares, ainda se repercutem na minha saudade. Os dias seguintes até os Reis, com quebra do dia do Ano Bom, eram dedicados a amigos e conhecidos (Fernandes 1999: 65).
Outro autor dá-nos o seu testemunho deste modo:
À missa do galo iam as famílias católicas, a que se seguia a ceia e o ansiado momento de abertura das prendas. As festas prolongavam-se no dia de Natal, com almoço e jantar especialmente confeccionados para a ocasião, onde não faltavam o peru e outros pratos escolhidos pelas donas de casa, elas próprias quase sempre excelentes cozinheiras.
Apesar das grandes modificações operadas nas últimas décadas, muitas destas tradições mantiveram-se. A quadra festiva também era e é aproveitada para familiares se reencontrarem e para cada um se lembrar dos amigos, separados pela distância e pelo tempo (Rangel 2006: 278).
Eis um outro sugestivo relato de um velho residente, José Silveira Machado, originário dos Açores e ex-professor da Escola Comercial Pedro Nolasco, ao relembrar o seu primeiro Natal em Macau:
Ainda hoje recordo essa noite de festa e de emoções, que me deu a oportunidade de vir a conhecer, ao longo da minha vivência em Macau, a forma tradicional e muito especial como os macaenses preparavam e celebravam esta data tão festiva.
Católicos por tradição, convicção ou devoção, na senda dos hábitos e costumes que os missionários, navegadores e comerciantes para aqui trouxeram das terras de Portugal, punham um carinho muito especial nas comemorações do nascimento do Menino de Belém. (…)
À noite todos se preparavam para assistir à Missa do Galo, enchendo-se de fiéis todas as igrejas da cidade e das ilhas, que, em noites de frio, se embiocavam em agasalhos grossos, porque não havia meios de transporte para os resguardar da inclemência do tempo. (…)
Terminada a Missa e o beija-pé ao Menino, regressavam todos a casa para a consoada em família, em que tomavam parte alguns parentes ou amigos mais chegados.
O que se fazia em primeiro lugar, era acender as velas e rezar diante do presépio e pedir graças para toda a família, presentes e ausentes.
Vinham então para a mesa grande perú, capão, presunto e todas as outras iguarias que faziam a delícia de todos (…) (Machado 2002: 139-140).
Devido à proximidade de Hong Kong, certos hábitos ingleses natalícios foram adoptados por algumas antigas famílias macaenses, como apagarem-se as luzes quando se serve o tradicional Christmas Pudding (pudim de Natal), em chamas, no Dia de Natal. Festa universal, comemorada de forma muito idêntica por milhões de pessoas, o Natal tinha e tem as suas especificidades próprias no seio das velhas famílias macaenses.
Bibliografia
BARROS, Leonel (1999). Macau – Coisas da Terra e do Céu. Macau: Serviços de Educação e Juventude.
COATES, Austin (1991). Macau – Calçadas da História. Trad. Luísa Guedes. Lisboa: Gradiva e Instituto Cultural de Macau.
FERNANDES, Henrique de Senna (1999). “Macau de Ontem” in Luís Sá Cunha (org.) (1999). Macau di nôs-sa coraçám – Memorandum afectivo para os participantes no III Encontro das Comunidades Macaenses. Pp. 51-69. Macau: Fundação Macau.
MACHADO, José Silveira (2002). Macau na Memória do Tempo. Macau: Edição do Autor.
PESSANHA, Camilo (1927). “Macau e a Gruta de Camões” in Luís Sá Cunha (org.) (1999). Camões nas Paragens Orientais – Textos por Camilo Pessanha e Venceslau de Morais. Reedição anastática do opúsculo editado em 1927. Pp. 12-15. Macau: Fundação Macau e Instituto Internacional de Macau.
RANGEL, Jorge A. H. (2006). Falar de Nós: Macau e a Comunidade Macaense – acontecimentos, personalidades, instituições, diáspora, legado e futuro. Volume II. Macau: Instituto Internacional de Macau.
RANGEL, Jorge A. H. (2007). Falar de Nós: Macau e a Comunidade Macaense – acontecimentos, personalidades, instituições, diáspora, legado e futuro. Volume III. Macau: Instituto Internacional de Macau.
RANGEL, Jorge A. H. (2009). Falar de Nós: Macau e a Comunidade Macaense – acontecimentos, personalidades, instituições, diáspora, legado e futuro. Volume IV. Macau: Instituto Internacional de Macau.
RIBEIRO, Eduardo (2007). Camões em Macau – Uma certeza histórica. Colecção Ensaios do Meio. Macau: COD.
SILVA, Renelde Justo Bernardo da (2001). A Identidade Macaense / The Macanese Identity. Macau: Instituto Internacional de Macau.
TEIXEIRA, Padre Manuel (1999a). A Gruta de Camões em Macau. Macau: Fundação Macau e Instituto Internacional de Macau.
TEIXEIRA, Padre Manuel (1999b). Camões esteve em Macau. Macau: Fundação Macau e Instituto Internacional de Macau.
Macau e os territórios lusófonos
– uma colecção iconográfica única
no Arquivo Histórico de Macau
João M. Loureiro
As origens de uma colecção
Quando em Outubro de 1970 visitei pela primeira vez Macau, ainda estudante do terceiro ano de Direito e no âmbito de uma viagem promovida pelo Círculo de Estudos Ultramarinos, estava longe de supor que a minha ligação ao território se iria prolongar de modo permanente e tão particularmente intenso nas duas últimas décadas. O “Notícias de Macau” de 13 de Janeiro de 1971 publicou, na sequência dessa visita, um artigo meu denominado “Portugal no Extremo Oriente”, onde abordei a história do relacionamento multisecular luso-chinês na pequena península localizada nos mares do sul da China.
Largo do Leal Senado – Macau – C. 1960
Funeral de Lou Lim Ioc – Macau – C. 1927
Desde então não mais deixei de me interessar e de seguir os assuntos de Macau, com o mesmo gosto com que acompanhava a evolução e as perspectivas da então África portuguesa, em especial Angola, onde viria a iniciar a minha vida profissional dois anos mais tarde. Recém-formado concorri em 1972 ao Ministério Público ultramarino e fui colocado em Malanje, cidade atraente das terras férteis do planalto nordestino, e durante o período do serviço militar desempenhei, em acumulação, as mesmas funções na capital da província cafezeira do Uíge (então designada por cidade de Carmona). Aqui vivi os primeiros meses da guerra fraticida e anárquica que antecedeu a transição de Angola para a independência, com privações de toda a espécie, mas sobretudo com a incomensurável desilusão de conviver não só com mortes, desaparecimentos e êxodo, mas também com o ruir do sonho de um país livre, pacífico e multirracial.
Regressado a Lisboa nos princípios de Novembro de 1975, compreendi poucos anos depois que em Portugal existia, de forma dispersa, uma valiosa e imprescindível fonte da história do nosso país e dos novos países de língua oficial portuguesa: os postais fotográficos que, desde os fins do século XIX, nos revelavam as imagens das cidades e das vilas, das actividades económicas, dos povos e das culturas das antigas províncias africanas e asiáticas. Nos alfarrabistas e feiras de coleccionismo de Lisboa e arredores apareciam, com bastante frequência, álbuns de postais antigos ou exemplares avulsos que testemunhavam, de forma significativa, e por vezes inédita, o passado recente de tais territórios.
Comecei então a coleccionar, e com o tempo a pesquisa estendeu-se a outros mercados coleccionistas europeus, com especial destaque para uma notável “Carte Expo” que se realiza duas vezes por ano em Paris, congregando coleccionadores e comerciantes de todo o mundo.
Assim reuni uma vasta colecção sobre o Ultramar Português, que cedo superou em quantidade e abrangência as existentes nas bibliotecas e arquivos portugueses e lusófonos.
Banco Nacional Ultramarino – S. Vicente, Cabo Verde – C. 1935
Tudo começou em Macau
A colecção teria permanecido encaixotada e desconhecida se não fosse Macau! Em 1995, um grande amigo dos tempos descomprometidos da juventude e então membro do governo do território, teve a iniciativa e a responsabilidade de promover a primeira exposição da minha colecção e, na sua sequência, patrocinar a edição do meu primeiro álbum “Postais Antigos de Macau”. Jorge Rangel, actualmente presidente do Instituto Internacional de Macau, foi portanto o grande impulsionador do posterior desenvolvimento da colecção e da notoriedade que viria a ter.
Não é possível visualizar integralmente os espaços, os instrumentos e as personagens da história recente de Portugal em terras tropicais de África e do Oriente, que se concretizam e potenciam a partir dos finais de oitocentos, sem recorrer às imagens dos postais fotográficos. A colecção que reuni sobre os países e territórios que formaram o antigo ultramar, tem como limite temporal o ano de 1975, altura em que se completaram os processos de independência conferidos pela terceira república portuguesa. Só Macau ficou em aberto até Dezembro de 1999, data em que ocorreu a transferência da administração portuguesa para a República Popular da China.
Através dos exemplares que a integram é possível rever as cidades e as povoações, os edifícios públicos e religiosos, as plantações e as roças, as actividades comerciais e os mercados, as pontes e os caminhos-de-ferro, os tipos humanos e os costumes, e ainda revisitar acontecimentos de relevo, tais como as operações militares no sul de Angola no princípio do século XX ou a viagem do Príncipe D. Luís Filipe às colónias, a proclamação da República em Cabo Verde ou Moçambique e a primeira feira industrial de Macau em 1926. Afigura-se-me portanto que a dimensão e âmbito desta colecção a posicionam como uma importante fonte das histórias contemporâneas não só de Portugal mas também dos diversos países e territórios de língua oficial portuguesa.
Vista Aérea – Bissau, Guiné – C. 1957
Esta mesma conclusão tem sido corroborada por diversos historiadores que a ela acederam, directa ou indirectamente através das exposições e edições dela derivadas. Limito-me aqui a transcrever duas dessas opiniões. O Professor Francisco Bethencourt, do King’s College de Londres e então Director do Centro Cultural da Fundação Gulbenkian em Paris, considera que se trata de “... uma colecção única cuja consulta João Loureiro tem tido a generosidade de facultar aos investigadores. Na nossa opinião é impossível trabalhar sobre as antigas colónias portuguesas nos séculos XIX e XX sem utilizar este acervo de imagens”. René Pélissier, um dos maiores especialistas sobre a história da África de expressão portuguesa, designou-a de “monumento único”. “É verdadeiramente impressionante e ridiculariza as modestas – e outrora por vezes inacessíveis ao historiador estrangeiro – colecções oficiais existentes em Portugal.... O trabalho colossal de João Loureiro marca uma viragem capital na recolha de iconografia colonial, não só no antigo império português mas em todas as restantes colonizações. ... Os oito grandes volumes publicados por João Loureiro constituem uma colecção iconográfica que não tem concorrentes em todo o mundo, quer pelo número de páginas e de imagens apresentadas quer pela sua variedade e interesse documental”. As imagens que acompanham este breve artigo são por si bastante elucidativos de tudo quanto se referiu sobre o valor do postal como fonte incontornável da história.
Uma rua da cidade – S. Tomé e Príncipe – C. 1930
Tudo ficará em Macau
A colecção de 10.800 postais fotográficos que reuni ao longo de duas décadas, que baseou a edição de dezassete álbuns temáticos e a realização de exposições em Macau, Goa, Lisboa, Paris e Maputo, foi recentemente adquirida pelo Arquivo Histórico de Macau. Esta instituição designou uma equipa técnica que se encontra a proceder à sua reorganização assente em critérios de metodologia arquivística, que tenho acompanhado e que estou seguro que facilitarão de sobremaneira a sua consulta e acesso por académicos e pesquisadores. “Macau e os territórios lusófonos” – assim se rebaptizou a colecção –constituirá com toda a certeza uma referência imprescindível na iconografia dos PALOPS e territórios do Oriente.
A minha decisão de a enviar para Macau tem a ver com uma reflexão prévia que fiz sobre os seus possíveis destinos. Não desejava de todo que, por minha morte, a colecção fosse poupada nos primeiros tempos, depois esquecida e mais tarde alienada porventura de forma displicente. Queria sentir-me confortável por, com lucidez e critério, poder garantir a sua integridade e acessibilidade por quem se interessasse pelos seus conteúdos. Ora é indubitável que a China, através de Macau, está a apostar fortemente no desenvolvimento do seu relacionamento com os países e territórios lusófonos contemplados no acervo de imagens que reuni.
Para o justificar plenamente basta recordar que em 2013 assinalou-se o décimo aniversário do estabelecimento do Forum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Oficial Portuguesa, sendo que esta plataforma de contactos não prescinde de quaisquer valências ligadas ao saber e ao conhecimento sobre as suas áreas de actuação.
Vista parcial – Luanda, Angola – C. 1965
Vista parcial – Lourenço Marques, Moçambique – C. 1910
A RAEM ficará assim a dispor, através do seu Arquivo Histórico – actualmente integrado no prestigiado Instituto Cultural de Macau – de uma colecção iconográfica única, sem paralelo em outros arquivos congéneres. E para mim, que a iniciei e expandi, é com enorme orgulho e alegria que a vejo ficar sedeada numa instituição de excelência cuja Directora, a Dra. Lau Fong, desde o primeiro momento entendeu integralmente o seu significado e valor. Ficará assim no singular e fascinante território de Macau a colecção que criei e consolidei ao longo de duas décadas. Oxalá dela se possam aproveitar e beneficiar todos os que se interessam pelo passado e pelo futuro do mundo ímpar da lusofonia.
Palácio do Governador – Pangim, Goa – C. 1925
Caçando um crocodilo – Timor – C. 1960
NOTA: Edições desta colecção disponíveis no Instituto Internacional de Macau, na plataforma IIM BOOKSHOP: Clicar neste link para acesso desta colecção no IIM Bookshop
Notas sobre três referências culturais da comunidade macaense
Alexandra Sofia Rangel
Investigadora do IIM
Neste artigo são recordadas três distintas e marcantes personalidades, tidas generalizadamente como figuras de referência cultural da comunidade macaense: Luís Gonzaga Gomes, José dos Santos Ferreira (Adé) e Henrique de Senna Fernandes.
Luís Gonzaga Gomes
Luís Gonzaga Gomes nasceu em Macau a 11 de Julho de 1907 e faleceu a 20 de Março de 1976. Começou a escrever aos 14 anos, quando frequentava o Liceu de Macau, onde foi aluno de Camilo Pessanha e colaborou no jornal A Academia, que também contou com a pena do seu amigo e colega Joaquim Paço d’Arcos, que se tornaria um grande escritor da língua portuguesa, filho do então Governador de Macau, Henrique Monteiro Correia da Silva (Paço d’Arcos) (Teixeira 1986: 466). Após concluir o liceu, ingressou na Repartição Técnica do Expediente Sínico,1 onde se dedicou ao estudo do chinês, formando-se como intérprete de 1ª classe (Teixeira 1986: 469). Foi professor primário durante 24 anos ao mesmo tempo que aprofundou os seus conhecimentos da língua chinesa, que lhe permitiram ensiná-la no Liceu de Macau e na Escola dos Correios, Telégrafos e Telefones (Batalha 2007: 9).
Ao longo da sua vida, Luís Gonzaga Gomes trabalhou muito no sentido do enriquecimento do diálogo cultural luso-chinês, efectuando traduções e compilações, realizando estudos e escrevendo artigos em jornais e livros. Publicou em chinês uma tradução de Os Lusíadas contados às crianças de João de Barros (1942), História de Portugal (1955), Vocabulário Português-Cantonense (1941) e Vocabulário Cantonense-Português (1942). Das obras em português destacam-se Monografia de Macau (1950), Contos Chineses (1950), Lendas Chinesas de Macau (1951), Curiosidades de Macau Antiga (1952), Chinesices (1952), Festividades Chinesas (1953), Arte Chinesa (1954) e Efemérides da História de Macau (1954) (Teixeira 1986: 479-480).
Como afirma Graciete Batalha, no prefácio do livro Macau Factos e Lendas, uma compilação de artigos de Luís Gonzaga Gomes, “Mais de 30 volumes publicados, mais de 20 jornais e revistas em que colaborou ou que dirigiu, atestam bem a sua determinação de divulgar a história e a cultura macaense ou de contribuir para o intercâmbio cultural luso-chinês” (Batalha in Gomes 1994: 5). E no seu opúsculo Luís Gonzaga Gomes e o Intercâmbio Cultural Luso-Chinês, “(…) houve em Macau um homem silencioso e tenaz que, sem grande apoio moral ou material (…) dedicou grande parte da sua vida ao estudo da língua e da cultura chinesa, ao mesmo tempo que da ocidental, e ao meritório trabalho de as dar a conhecer uma à outra” (Batalha 2007: 9). Em Macau Factos e Lendas, Luís Gonzaga Gomes conta uma história relativa a duas árvores no jardim do templo de Kun Iâm, a Deusa da Misericórdia, onde “(…) reina sempre profundo silêncio e um ar de mistério bem propícios para quem nele intente buscar o recolhimento e a paz de espírito” (Gomes 1994: 69). Segundo esta lenda, antes de existir o templo, aquela área era ocupada por um pequeno povoado. Um dos lavradores, mais abastado que os seus vizinhos, vivia apenas com a sua filha e dois empregados. A filha e um dos empregados acabaram por se apaixonar, e ele foi pedir ao lavrador autorização para casar com ela. Este não consentiu e proibiu os dois jovens de se encontrarem novamente. Desesperados com a sua situação, os dois resolveram suicidar-se,
(…) pois talvez conseguiriam alcançar a felicidade noutro mundo, uma vez que não poderiam ser felizes neste (…) e, depois de se abraçarem e chorarem muito, enforcaram-se, corajosamente, cada um, nos ramos de duas árvores que cresciam isoladas naquele local. (…) E, fenómeno que causou tão grande espanto, as duas árvores, onde os dois desgraçados amantes se suicidaram, passaram, daí em diante, a desenvolver-se com extraordinária pujança, mas com os seus troncos abraçados um ao outro, como dois seres envolvidos num forte amplexo e com o estranho aspecto com que ficou até hoje (Gomes1994: 70-71).
Este local é um dos mais visitados em Macau, quer por residentes, quer por turistas. Luís Gonzaga Gomes foi conservador do Museu Luís de Camões,2 director da publicação Arquivos de Macau, director-bibliotecário da Biblioteca Central de Macau, vice-presidente e presidente da Comissão Administrativa do Leal Senado,3 secretário da Comissão da Defesa e Valorização do Património Artístico e Histórico da Província de Macau, secretário da comissão de instalação do Arquivo Central de Macau, além de ter igualmente desempenhado cargos em organismos da sociedade civil, como presidente do Rotary Clube de Macau, secretário do Círculo de Cultura Musical e do Círculo Cultural de Macau e secretário da Associação Desportiva Macaense. Foi também director da Emissora de Macau, correspondente da Agência ANI, chefe de redacção e administrador da revista Renascimento, secretário-geral e redactor do diário Notícias de Macau e colaborador de numerosas publicações periódicas locais, nacionais e estrangeiras (Rangel 2007: 14-15).
Além da sua actividade profissional, nos tempos livres, Luís Gonzaga Gomes representou Macau em ténis contra grupos de Hong Kong, tocou violino no Grupo de Amadores de Teatro e Música, participou como cantor em concertos e programas de rádio e adaptou e foi actor em peças radiofónicas (Teixeira 1986: 477). No entanto, era conhecido por ser uma pessoa solitária, dedicada aos seus trabalhos de investigação: “Luís Gomes foi o melhor e o mais prolífico historiador macaense nestes quatrocentos anos de vida desta terra, mas tão modesto que se escondia no pó dos Arquivos, sendo raro vê-lo em qualquer festa ou divertimento. Era um verdadeiro anacoreta” (Teixeira 1986: 473-474).
Em 2007, comemorou-se o centenário do seu nascimento, com um muito variado programa que incluiu uma missa e homenagem junto da sua campa no Cemitério de S. Miguel, uma exposição fotobiográfica, lançamentos de reedições de obras suas e palestras sobre a sua vida e obra. Onze entidades da sociedade civil de Macau assinaram um protocolo de cooperação na organização e promoção destas comemorações. Foi também reactivado o Cenáculo Luís Gonzaga Gomes, com sede na Sala Luís Gonzaga Gomes no Instituto Internacional de Macau (Rangel 2007: 27). Entretanto, a Sociedade Histórica da Independência de Portugal, ao reestruturar as suas subunidades de intervenção cultural, criou em Lisboa, em 2016, com a colaboração do Instituto Internacional de Macau, o Instituto Luís Gonzaga Gomes – Portugal, Macau, China. O nome de Luís Gonzaga Gomes foi dado a uma rua de Macau e a uma escola secundária e o seu busto, da autoria do escultor italiano Oseo Acconci, encontra-se no Jardim dos Poetas, numa zona nova da cidade de Macau. Foi condecorado pelo Estado Português com o grau de Cavaleiro da Ordem do Infante D. Henrique e, por decisão do Governador de Macau, foi-lhe atribuída, a título póstumo, a Medalha de Valor, a mais alta condecoração de Macau na vigência da administração portuguesa. O Governo Francês concedeu-lhe o grau de Cavaleiro da Ordem das Palmas (Rangel 2007: 16).
José dos Santos Ferreira (Adé)
José Inocêncio dos Santos Ferreira, conhecido por Adé, nasceu em Macau a 28 de Julho de 1919, o mais novo de dezoito irmãos, filho de mãe macaense e pai português, natural de Seia que, nesse mesmo ano, partiu para Timor em busca de fortuna, trabalhando como comerciante. Morreu pouco tempo depois, deixando a família quase na miséria (Marreiros 1994: 21-22). Por este motivo, o pagamento das propinas e outras despesas escolares foi bastante difícil para José dos Santos Ferreira, deixando o Liceu de Macau aos dezassete anos para procurar emprego. Foi auxiliar de topógrafo e fiscal de obras antes de cumprir o serviço militar obrigatório. Entrou no quadro da Secretaria dos Serviços de Saúde em 1943 e, em 1956, foi nomeado chefe de Secretaria no Liceu de Macau, onde “(…) preocupou-se imenso e muito batalhou para que os alunos, filhos de famílias de condições económicas modestas, tivessem isenção de todas as propinas – matrícula, frequência e exames – e livros e material didáctico necessários (…) Muitos alunos beneficiaram dessa sua preocupação” (Marreiros 1994: 22). Conseguiu, portanto, que vários jovens não tivessem de passar pelo mesmo que ele, dando-lhes oportunidades e incentivando-os a continuar os estudos, especialmente quando, em 1964, se tornou secretário da STDM– Sociedade de Turismo e Diversões de Macau e convenceu os proprietários da empresa a instituir bolsas de estudo para o ensino secundário, universitário e pós-universitário (Marreiros 1994: 22-23).
Entusiasta de jornalismo, colaborou em vários periódicos locais, fez parte do corpo redactorial do Notícias de Macau e foi chefe de redacção de O Clarim, Comunidade e Gazeta Macaense. Foi correspondente dos jornais portugueses Diário de Notícias, Diário do Norte e Diário Popular, do jornal de Hong Kong China Mail e da agência noticiosa Associated Press (Marreiros 1994: 23). José dos Santos Ferreira também gostava de desporto e praticou futebol, atletismo, ténis e hóquei em campo, tendo desempenhado cargos e organizado competições no Hóquei Clube de Macau, Associação de Futebol de Macau, Conselho de Desportos, Ténis Civil, Associação de Hóquei em Campo de Macau e Associação de Tiro de Macau (Marreiros 1994: 23). Integrou a Mesa Directora da Santa Casa da Misericórdia e a Direcção do Clube de Macau e foi presidente do Rotary Clube de Macau. Pelo Governo Português foi condecorado com a Ordem do Infante D. Henrique (grau de Cavaleiro) em 1979 e, do Governo de Macau, recebeu as medalhas de Mérito Desportivo e de Mérito Cultural em, respectivamente, 1983 e 1984 (Marreiros 1994: 25).
Além de todas estas actividades, foi na escrita, principalmente na poesia, em que ele mais se destacou, recuperando o dialecto macaense e dando-lhe uma nova vida nas suas récitas e poemas, sendo o seu maior divulgador, publicando as seguintes obras em patuá: Macau Sã Assi (1968), Qui-nova, Chencho (1974), Papiá Cristãm di Macau (1978), Camões, Grandi na Naçám (1982), Poéma di Macau (1983), Macau di Tempo Antigo (1985), Natal – Amor, Paz, Alegria (1986), Acunga Natal qui nôs já sunhá (1988), Macau, Jardim Abençoado (1988), Sã Natal, Jesus já nascê (1989), Luz di Natal (1990), Dóci Papiaçám di Macau (1990), Natal Cristãm (1991) e Poema na Lingu Maquista (1992) (Marreiros 1994: 26-27).
No entanto, apesar de ter uma vida preenchida, o poeta, por dentro, estava a sofrer com o futuro próximo da sua terra natal:
(…) cada vez mais negro estava também, segundo ele, o horizonte da sua amada terra que um dia acordaria chinês. O poeta que sempre acordou português, em todas as madrugadas, não podia continuar a conviver com a angústia de um dia acordar chinês. Nunca se acostumou à ideia, por isso, foi morrendo por dentro, pedaço a pedaço, despedaçado. Essa foi a sua morte, para quem o conhecia (Marreiros 1994: 25).
José dos Santos Ferreira faleceu num hospital de Hong Kong, a 24 de Março de 1993. O seu poema “Adios di Macau” (“O Adeus de Macau”), escrito dez anos antes da transferência de administração, é revelador do estado de espírito do poeta, traduzindo a sua profunda mágoa com o destino traçado para a sua terra. Transcrevo a primeira parte desse poema, em patuá e na versão portuguesa, também da sua autoria:
“Adios di Macau”
Macau ta perto falá adios
Pa tudo su filo-filo,
Pa Portugal,
Pa gente qui divera querê pa êle.
Quim têm êle na coraçám,
Lôgo sentí grándi margura;
Voz lô ficá engasgado na gargánta
Na ora di falá adios pa Macau.
Ah! Divera saiám, nôsso Macau!
Qui dói coraçám olá vôs têm-qui vai,
Escapulí di nôsso vida,
Vivo separado di nôsso Portugal.
Nôs nom-quêro vôs vai,
Vôs onçôm tamêm nom-quêro vai…
Mâz quim sã nôs
Na estunga mundo di gente poderoso,
Cuza sã nôs
Na estunga mar di ónda assanhado?
Têm más dez áno,
Dez áno na-más.
Tempo corê ligéro,
Trás di tempo, tudo passá azinha.
(…)
(Ferreira 1990: 27).
“O Adeus de Macau”
Macau está quase a dizer adeus
A todos os seus filhos,
A Portugal,
Às pessoas que a amam verdadeiramente.
Aqueles que a guardam no coração
Hão-de sofrer grande mágoa;
A voz lhes ficará embargada na garganta
No momento de dizerem adeus a Macau.
Oh! Que grande pena, nossa Macau!
Que sofrimento saber que terás de ir,
Sair da nossa vida
E viver desacompanhada do nosso Portugal.
Não queremos que vás,
Nem tu própria quererás ir…
Mas quem somos nós
Neste mundo de gente poderosa,
O que somos nós
Neste mar de ondas agrestes?
Faltam dez anos,
Apenas dez anos.
O tempo corre veloz
E atrás do tempo tudo desliza ligeiro.
(…)
(Ferreira 1990: 201).
A comunidade macaense adaptou-se ao novo estatuto de Macau, como região administrativa especial da República Popular da China e continua, localmente e na diáspora, a recordar Adé como um dos seus filhos mais dilectos.
Henrique de Senna Fernandes
Henrique Rodrigues de Senna Fernandes nasceu em Macau a 15 de Outubro de 1923, oriundo de uma das mais antigas famílias do território. Fez os ensinos básico e secundário em Macau. Terminou, em 1952, o curso de Direito na Universidade de Coimbra e regressou a Macau dois anos depois, exercendo advocacia desde então. Foi também professor na Escola Primária Oficial, no Liceu Nacional Infante D. Henrique, na Escola do Magistério Primário e na Escola Comercial Pedro Nolasco, de que foi director durante doze anos, sendo recordado com saudade e admiração por milhares de alunos que o consideram um dos melhores mestres de gerações de jovens de Macau (Rangel 2006: 101).
Desempenhou cargos em organismos públicos e associativos, como director da Biblioteca Central de Macau e da Biblioteca Sir Robert Ho Tung, director do Centro de Informação e Turismo do Governo de Macau, membro do Conselho Consultivo do Governador de Macau, presidente do Rotary Clube de Macau, presidente da Assembleia Geral da Associação Promotora da Instrução dos Macaenses e presidente da Associação dos Advogados de Macau (Rangel 2006: 101). Foi colaborador em vários periódicos de Macau, como A Voz de Macau, Notícias de Macau, O Clarim, Gazeta Macaense e Ponto Final, e nas revistas Mosaico e Revista de Cultura. Foi também crítico de cinema na Emissora de Radiodifusão de Macau (Rangel 2006: 102).
Henrique de Senna Fernandes publicou duas compilações de contos, Nam Van – Contos de Macau (1978) e Mong Há (1998), e dois romances, Amor e Dedinhos de Pé (1985) e A Trança Feiticeira (1993), este último com uma tradução em língua inglesa, The Bewitching Braid. Os dois romances foram levados ao cinema: Amor e Dedinhos de Pé foi realizado por Luís Filipe Rocha em 1993, e A Trança Feiticeira por Yuanyuan Cai em 1996. Os actores principais foram, respectivamente, Joaquim de Almeida, no papel de Francisco da Frontaria, e Ricardo Carriço, no papel de Adozindo. O seu conto “A-Chan, a Tancareira”, vencedor do Prémio Fialho de Almeida dos Jogos Florais da Queima das Fitas de 1950 da Universidade de Coimbra, relata a história de amor em Macau entre uma chinesa pobre, tancareira, 4 chamada A-Chan, e um marinheiro português, Manuel, nos inícios da década de 40 do século XX. Destaco a seguinte passagem que traduz a atracção de Manuel por A-Chan:
A-Chan trazia-lhe paz na sua determinada dedicação. Chocava-o aquela submissão de fêmea amorosa que nada pedia. Uma calada devoção que o enternecia. Gostava de ficar ao pé dela a seguir a marcha rutilante das estrelas, a paisagem nocturna de Macau, o casario da Penha e o da Barra, diluídos em sonho no fundo azul da noite. Era feia, ignorante, açulada pela canga do rio. Mas os olhos orientais não escondiam uma imensa ternura pelo marinheiro saudoso do mar. Sensibilizava-o a maneira como lhe sorria, como lhe oferecia a tigela de chá ou como lhe passava os dedos calosos e ásperos pelos seus cabelos loiros de europeu, num requinte de familiaridade. Falavam pouco, entendiam-se mais por gestos que por palavras. Mas que reconfortantes os silêncios em que ela se apagava num canto do tancá para não lhe perturbar as meditações (Fernandes 1978: 11-12).
Manuel e A-Chan, apesar de não estarem casados, acabam por ter uma filha mestiça, com “cabelos aloirados, tez quase branca, olhos claros, a denunciar ascendência europeia” (Fernandes 1978: 14). Viveram juntos mas, com o fim da Guerra no Pacífico, Manuel é obrigado a regressar a Portugal:
Tornou-se-lhe obsidiante o problema da filha. Não tinha coragem de renunciá- la. Que futuro lhe reservaria a tancareira? Cresceria no ambiente soturno do porto, acompanharia a mãe nos espinhos do ofício, maltratada pelo mundo e pela fome que é o estigma de todas as camadas paupérrimas da China. E depois, Mei-Lai não tinha feições puras de oriental. Só por si denunciava uma pecaminosa ligação com o europeu. Nunca vira mestiças a trabalhar no rio. Para outros caminhos as levara o destino. Para os bordéis, para as hospedarias das vielas do amor. Em toda parte, onde nasciam rebentos clandestinos de europeus, a prostituição lucrava. Não, não podia abandonála (Fernandes 1978: 16).
Sabendo que só ele poderia oferecer uma vida melhor à sua filha ilegítima, Manuel leva-a com ele para Portugal, abandonando A-Chan no porto, ouvindo os seus “(…) soluços (…). Espaçados, pungentes, envergonhados” (Fernandes 1978: 18). Henrique de Senna Fernandes foi condecorado com o grau de Oficial da Ordem da Instrução Pública (1978), a Comenda da Ordem do Infante D. Henrique (1986), a Medalha de Mérito Cultural do Governo de Macau (1989), a Medalha de Valor do Governo de Macau (1995), o grau de Grande Oficial da Ordem Militar de Santiago de Espada (1998), o título de Cidadão Emérito de Macau (1999) e a Medalha de Mérito Cultural da Região Administrativa Especial de Macau (2001) (Rangel 2006: 101-102). Em 2003, foi eleito académico correspondente da Academia Internacional da Cultura Portuguesa e, em 2004, recebeu o Prémio Identidade do Instituto Internacional de Macau, destinado a contemplar “(…) personalidades ou instituições que, pela sua acção, obra e exemplo, hajam contribuído, activa e significativamente, para a preservação e o reforço da identidade de Macau” (Rangel 2006: 100). O Instituto Internacional de Macau quis homenagear, “(…) com toda a justiça, o escritor, o professor, o jurista, o bibliotecário e o dirigente dedicado de organismos locais, públicos e privados, que muito contribuiu para a afirmação da identidade cultural de Macau, sendo por muitos considerado o patriarca da comunidade” (Rangel 2006: 103).
Henrique de Senna Fernandes faleceu no dia 4 de Outubro de 2010. Não obstante problemas de saúde que limitaram a sua intervenção cívica e cultural, continuou nos últimos anos da sua vida a ser um membro activo de várias organizações, como o Conselho das Comunidades Macaenses e a Confraria da Gastronomia Macaense. Na nota de abertura do seu livro de contos Nam Van – Contos de Macau, escreveu: “Se alcancei o meu objectivo, ficarei grato por saber que prestei um serviço à minha terra” (Fernandes 1978: 4). É óbvio que sim. O Instituto Cultural de Macau assumiu, entretanto, a responsabilidade de publicar as obras completas de Henrique de Senna Fernandes, cujos primeiros volumes foram o romance inédito Os Dores, em 2012, a que se seguiram as reedições de Amor e Dedinhos de Pé e A Trança Feiticeira e, em 2015, A Noite Desceu em Dezembro, um novo romance parcialmente publicado no jornal Ponto Final.
***
Estes três escritores macaenses, para além das relevantes obras que nos legaram, tiveram uma intervenção cívica da maior importância, contribuindo decisivamente para o reforço da singularidade de Macau. A sua memória continuará certamente a estimular novas gerações da comunidade macaense a enfrentar, com sucesso, os acrescidos desafios que as mudanças históricas verificadas na terra-mãe e na diáspora lhes lançaram.
Bibliografia
BATALHA, Graciete Nogueira (2007). Luís Gonzaga Gomes e o Intercâmbio Cultural Luso-Chinês. Colecção Mosaico. Volume III. Macau: Instituto Internacional de Macau.
FERNANDES, Henrique de Senna (1978). Nam Van – Contos de Macau. Macau: Edição do Autor.
FERREIRA, José dos Santos (1990). Doci Papiaçám di Macau. Colecção Poetas de Macau. Volume I. Macau: Instituto Cultural de Macau.
GOMES, Luís Gonzaga (1994). Macau Factos e Lendas. 3.ª edição. 1.ª edição 1979. Macau: Instituto Cultural de Macau.
MARREIROS, Carlos (1994). Adé dos Santos Ferreira – Fotobiografia. Macau: Fundação Macau.
RANGEL, Jorge A. H. (2006). Falar de Nós: Macau e a Comunidade Macaense – acontecimentos, personalidades, instituições, diáspora, legado e futuro. Volume II. Macau: Instituto Internacional de Macau.
RANGEL, Jorge A. H. (2007). No Centenário de Luís Gonzaga Gomes. Colecção Mosaico. Volume VI. Macau: Instituto Internacional de Macau.
TEIXEIRA, Monsenhor Manuel (1986). Liceu de Macau. 3.ª edição. 1.ª edição 1944. Macau: Direcção dos Serviços de Educação.
A Imagem dos Portugueses na Mira dos Chineses e dos Macaenses
Álvaro Rosa
Ana Cristina Alves
Docentes Universitários
Lisboa vs. Macau
Os manuais da Economia ensinam-nos que o progresso económico de um país é espelhado, em larga medida, no poder de compra da classe média desse país. A aplicação deste conceito à realidade chinesa responde à evidência de que o desenvolvimento económico da China nos últimos trinta anos tem gerado uma classe média que se estima rondar os 180 milhões de pessoas. É bom sinal para o mundo, pois, são mais 180 milhões a consumir, a viajar e a instalar-se nos hotéis. Segundo as estatísticas oficiais, visitam Portugal, por ano, cerca de 300 mil chineses. A este número somam-se uns dois milhares de estudantes e existem mais de 20 mil os que decidiram fixar-se por cá.
Bem longe do tempo presente que corre em que vemos chineses por tudo quanto é sítio, a nossa opinião sobre os chineses já estava bem formada. Os arquétipos mais comuns que os portugueses têm relativamente a esta nação asiática são: “os chineses comem arroz”, “são pacientes” e “praticam artes marciais”. É importante que se diga que arquétipos são ideias baseadas em observações de uns quantos, em regra polarizadas num determinado sentido e não correspondem, na maior parte das vezes à realidade. Por exemplo, no caso do arroz, apenas os chineses das regiões meridionais da China consomem arroz regularmente, porquanto que os chineses nortenhos, consomem muito mais pão ou massa. Quanto à “paciência do chinês”, diríamos que são tão impacientes quanto o são os portugueses, apenas são menos reativos. No que respeita às artes marciais, em termos proporcionais, serão tantos os chineses a praticar o kung fu quanto os portugueses que praticam karaté.
Porém, a discussão que propomos neste trabalho não se centra na nossa perceção do chinês, mas antes, a perceção que os chineses têm de nós, da nossa cultura e do nosso comportamento na sociedade.
A este propósito, um artigo interessante de Fok Kai Cheong (1987), natural de Macau, publicado em livro, dava-nos as primeiríssimas perceções que os chineses tinham dos portugueses do século XVI. Dizia o Professor Fok que os portugueses eram assustadores! Com certeza, basta recordarmo-nos que foram os portugueses os primeiros ocidentais a chegar às costas da China. À exceção dos homens do mar, até aí, os nativos locais nunca tinham visto um ocidental.
Conta a história que foi Jorge Álvares o primeiro navegador a acostar o sul da China, algures no delta do rio das Pérolas, no ano 1513. E, três anos mais tarde, o capitão Fernão Peres de Andrade chega a Cantão e tentará levar uma embaixada liderada por Tomé Pires até ao Imperador, por volta do ano 1520, a fim de estabelecer relações comerciais formais com a China, façanha que redundará em falhanço, devido a vários motivos, entre os quais, intrigas criadas pelo deposto rei de Malaca junto da corte imperial chinesa. Nos anos de 1521 e 1522, houve novas tentativas da parte portuguesa em estabelecer relações comerciais com a China, porém, nada de frutífero foi possível por que a China entendeu banir todo e qualquer negócio com estrangeiros.
Como resultado, a chegada dos primeiros portugueses à China foi recheada de incidentes e infelicidades. Logo, as primeiras impressões deixadas não podiam ser favoráveis. Fok dizia que os primeiros registos das impressões chinesas da altura davam conta de que os portugueses eram uma espécie de goblin, “portadores de apenas parecenças superficiais com o ser humano normal e… descendiam de antigos canibais”. Os seus corpos tinham formas estranhas, os seus trajes bizarros e o seu comportamento abjeto.
Os mesmos registos descreviam, ainda, os portugueses como enormes de “sete pés”, com nariz grande, tez clara, boca em bico e olhos de gato. A sua barba era farta e encaracolada, enquanto que a cor dos cabelos se aproximava do vermelho. Mas, também havia outros que eram carecas e com barba feita.
O que mais causava impressão aos chineses era o comportamento dos portugueses. Como estes não cumpriam o preceito tradicional da cultura chinesa, os locais igualavam as gentes lusas a animais. Diziam que os portugueses só se pareciam com humanos quando estavam bem-dispostos e que “a sua natureza animal prevalecia quando perdiam a boa temperança” (Fok, 1987).
Os portugueses eram tão mal vistos que os indígenas locais os consideravam canibais – comiam crianças ao pequeno-almoço. Fok argumentava que a violência dos portugueses e o seu ímpeto de resolver tudo à espada e às armas de fogo fizeram com que tivessem essa imagem tão negativa.
Efetivamente, os portugueses foram proibidos de todo o comércio na costa chinesa desde os incidentes de 1521-1522 e só voltaram a acostar nessas margens depois de 1550.
Esses tempos já lá foram.
Hoje, à força de sucessivas vagas de globalização, os povos aproximaram-se. O comércio foi e continua a ser o grande veículo de aproximação dos povos. A reboque, vem o turismo que desperta para o conhecimento do desconhecido, para o deleite dos nossos sentidos e, para a experimentação de novas vivências. Na nossa era, nenhum povo jamais espantará pela aparência física de qualquer outro, contudo, cada sociedade mantém os seus traços culturais ancestrais e quando elas se comunicam concorrentemente denotam-se as respetivas diferenças.
Ora, o português tem uma estrutura mental e uma base cultural muito distinta da do chinês. Quando um chinês decide viver em Portugal, a ele exige-se uma adaptação ou, pelo menos, uma compreensão do modo de estar e de agir do português para que lhe seja possível lidar com o dia a dia. E, neste caminhar da compreensão (ou de adaptação) cria-se uma determinada imagem do que é o português.
Queremos sublinhar que a imagem que o chinês tem da gente lusa não tem de coincidir com a imagem que o japonês ou o austríaco tem de nós. Serve-nos de exemplo a questão da pontualidade. Para nós, a hora acordada é simplesmente uma referência temporal – marcar um jantar para as 19 horas significa que a partir dessa hora nos encontramos para a refeição. Ninguém se aborrece se chegamos 15 ou 20 minutos mais tarde. Naturalmente, sabemos que para um alemão, essa dilação é uma ofensa, no entanto, para um amigo nosso do Brasil, 19h20 é a hora correta de sair da casa porque o jantar é o início do convívio que durará a noite toda. É imprescindível aceitar que diferenças culturais não implicam a noção de bem ou de mal. Nunca podemos dizer que estes povos estão certos ou aqueles errados. Entender a cultura significa tão simplesmente como perceber que diferentes sociedades têm comportamento e estrutura mental diferentes.
Cultural standards
A imagem que os chineses têm dos portugueses que aqui queremos apresentar vem de estudos científicos interculturais com base na metodologia conhecida como cultural standards. Esta metodologia científica procura identificar as diferenças culturais de um povo para outro sem procurar determinar perfis culturais extensíveis a quaisquer outros grupos.
Em termos procedimentais da metodologia cultural standards, são recolhidas entrevistas em elevado número e os dados tratados com técnicas de análise de estudos qualitativos. E, finalmente, os resultados são apresentados e discutidos com os entrevistados com o fito de avaliar o grau de fiabilidade das conclusões alcançadas. Este procedimento tem por princípio evitar a formação de estereótipos sempre indesejáveis. Dos estudos que conhecemos onde largo número de chineses por cá residentes foram entrevistados, extraímos seis dimensões presentes em todos os estudos, ou seja, seis aspetos culturais em que os chineses se consideram muito ou totalmente diferentes dos portugueses.
A imagem dos portugueses aos olhos dos chineses
Em primeiro lugar, é o ritmo de vida. Para os chineses, o ritmo quotidiano dos portugueses, seja no âmbito profissional, seja no âmbito individual ou familiar, é muito menos ritmado que o dos chineses. Os entrevistados fazem notar que para além de filas infindáveis nas diversões da Disney em Shanghai ou em Hong Kong, não existem filas na China, nem nas grandes cidades ou quando existem dispersam-se instantaneamente. Por cá, as pessoas aceitam como normal a existência de filas e o ter de esperar. E, há filas por todo o lado: nos transportes, no supermercado e até para comprar bilhetes para os espetáculos. Os chineses acham que os nossos jantares são demasiado demorados e entediantes. Até a «comida fast» tem a mesma dinâmica que o resto ao contrário do que se possa encontrar na China. Os chineses têm dificuldade em compreender porque se leva duas ou mais semanas para emitir um cartão bancário ou porque se leva dois dias para receber um pacote enviado por correio rápido ou, porque as entrevistas e encontros são marcados com uma dilação de vários dias. Assim acontece porque é este o modo de estar das pessoas, um ritmo relaxado de vida e da aceitação de «ter de esperar».
É evidente que este ritmo pausado da vida é responsável pelo nosso baixo nível de produtividade, e quando comparado com a Europa, a nossa produtividade é das mais baixas de toda a União Europeia, não porque sejamos menos capazes, mas sim, devido à nossa cultura de vida pausada.
O segundo aspeto cultural, referido pelos chineses, que os distancia de nós é a relativa falta de ambição das pessoas de cá. Segundo os entrevistados, os portugueses não se importam com o seu próprio desempenho e nem com a sua própria progressão social. De facto, estudos de outros estudiosos de assuntos interculturais, como por exemplo, Hofstede, indicam que os chineses são muito mais competitivos do que os portugueses. O sentido de sucesso material está sempre presente nas mentes chinesas ao passo que os portugueses preferem o bem- -estar e uma vida sossegada.
O terceiro ponto onde as culturas se distanciam muito é a cultura do lazer. Os portugueses preferem atividades «outdoor» e os chineses, ao invés, preferem entretenimentos «indoor». Estes admiram como os portugueses conseguem estar horas a fio na praia, sem fazer nada. É verdade que nas nossas praias vemos apenas um por cento das pessoas a nadar e outro um por cento a jogar à bola! Os outros noventa e oito por cento estão deitados a apanhar sol! Os chineses são incapazes desta forma de lazer, se não nadam, têm de comer, se não comem, têm de jogar, se não jogam, têm de dançar, mas parados não conseguem ficar! Efetivamente, os orientais são muito mais inclinados para o entretenimento dentro de portas, como sejam o karaoke ou jogos de cartas, nomeadamente o «mahjong».
Elemento água – típico em jardins chineses
A quarta dimensão apontada pelos chineses como sendo diferente dos portugueses é a cultura gastronómica.
Como se sabe, existem muitos pontos de contato entre as duas cozinhas, nomeadamente, a preferência pelo marisco, o recurso em larga medida a galináceos, o uso regular de leguminosas e vegetais em geral na alimentação quotidiana e, riqueza e variedade de pratos. Abundam, ainda assim, diferenças culturais na relação com a comida: os portugueses preferem comida pouco condimentada, preferem o realçar do sabor original dos alimentos, ao contrário dos chineses que preferem comida cozinhada com muito óleo e com muitos molhos. O trigo é o cereal principal na produção de pão cá em Portugal e os portugueses consomem muito pão; na China, o pão é feito, essencialmente, de farinha de arroz ou farinha de feijão de soja. O seu consumo varia geograficamente.
No mundo das bebidas quentes, o uso do chá na China tem o seu contraponto em Portugal no uso do café. Como é sabido, a expressão massiva do chá na China, tanto no apreço como nos efeitos (a teína, presente no chá, tem o mesmo efeito que a cafeína no café, pois atua como inibidor de sono) tem uma correspondência similar ao papel do café em Portugal: os chineses bebem tanto chá quanto os portugueses bebem café. Também podemos dizer que se bebe muito chá em Portugal. O que certamente não fazemos é chá com leite – os chineses adoram esta mistura, como também, chá com limão (às rodelas) açucarado ou com mel. Esta é uma bebida que é usada frequentemente após a refeição do almoço ou ao lanche. Outro pormenor cultural é a arte do chá. Não obstante, os chineses não praticarem a arte do chá com a minúcia e folclore como acontece no tradicional «cha-no-yu» japonês, os apreciadores de chá executam o que se chama de «kung fu cha», o que se pode traduzir por “preparação laboriosa de chá”. Esta prática requer equipamento adequado e taças de porcelana de chá de boa qualidade e um bom conhecimento das diferentes nuances de folhas de chá bem como de temperaturas de água para atingir os melhores resultados.
Outra diferença notória entre os dois povos é o serviço e disposição da refeição. Os portugueses, como todos os povos ocidentais, utilizam mesas quadradas ou retangulares para a refeição e, cada indivíduo tem a porção servida no seu prato. Os chineses comem em mesas redondas e os pratos são servidos todos ao mesmo tempo, colocados no centro da mesa, em jeito de partilha. Os chineses referem ainda que a refeição à portuguesa, sobretudo em ambiente mais formal, é bastante demorada, por um lado, porque é assim que as pessoas apreciam, e por outro, porque a comida é servida de modo sequencial – primeiro, a entrada, de seguida, a sopa, o prato principal que pode ser repartido em peixe e depois a carne, e por fim, a sobremesa. O costume chinês é servirem os pratos todos ao mesmo tempo, incluindo a sopa – as pessoas comem a sopa ao mesmo tempo que comem a restante comida, e em regra, não há sobremesa, porque toda a comida chinesa tem um ligeiro sabor adocicado de modo que não se sente a necessidade de sobremesa no final do repasto.
Tomando café numa esplanada tipicamente portuguesa
Uma casa de chá em Macau
A quinta dimensão que os chineses consideram muito distante dos portugueses é o conservantismo e a falta de propensão para a inovação.
Os chineses referem que os portugueses são muito zelosos no cumprimento das regras e regulamentos, acomodam-se ao estabelecido, o que os torna pouco flexíveis à mudança e à aceitação da diferença. Como consequência, o nível de inovação e empreendedorismo é reduzida em Portugal. Os chineses, pelo contrário, acham-se sempre em constante procura de novas soluções para velhos problemas, aceitam a mudança com naturalidade e dispõem-se a experimentar tudo o que é novo.
Apesar de os chineses não apreciarem o conservantismo português reconhecem que este tem efeitos positivos. Entre outros, referem que por os portugueses acatarem as leis com naturalidade, a sociedade portuguesa é mais ordeira, como o ato das pessoas validarem os seus títulos de transporte mesmo sem terem de passar por nenhum sistema de controlo de acesso. O relacionamento com os portugueses é fácil e agradável porque consideram que somos previsíveis, diretos na comunicação, sem ambiguidades no uso da palavra e a lógica intrínseca é bivalente – ou é ou não é. Este aspeto é fácil de compreender, sabendo que os chineses são um povo que utiliza a linguagem indireta e contextualizada. Um exemplo disso é no léxico chinês não contém a palavra “não” per si, e como tal, nunca dizem que não, preferindo explicar a rejeição através de exposições não lineares com imagens e afins.
A sexta e última dimensão encontrada é os chineses acharem que os portugueses são entusiastas, mas superficiais no relacionamento interpessoal. Os chineses referem que os portugueses, no seu relacionamento com estrangeiros, são positivos, otimistas e confiantes. Demonstram enorme vontade de ajudar e são simpáticos. No entanto, e apesar dos beijinhos com que presenteiam aos novos conhecidos, os chineses acham que é difícil pertencer ao círculo de relações chegadas dos portugueses. Acrescem que isso também acontece entre os portugueses. Por outras palavras, em termos sociais, o grupo de pessoas chegadas é sempre um grupo muito pequeno e muitas vezes, restringe-se unicamente à família. Dizem os chineses que os portugueses, no seu dia a dia, apressam-se para jantar em casa com a família, ao passo que eles preferem não cozinhar e encontrar-se com amigos em restaurantes.
Os chineses apercebem-se de um facto interessante da cultura organizacional em Portugal: os portugueses esforçam-se para criar um ambiente harmonioso (mas superficial) no local do trabalho, onde procuram dar-se bem com os colegas e também com o seu superior hierárquico mas que não têm o mesmo respeito, veneração e consideração que eles (chineses) têm pelo seu superior hierárquico. Acham que os portugueses obedecem aos seus superiores por razão de dever e nunca de corpo e alma. É curioso essa observação por parte dos chineses leva-nos a perceber como intuitivamente praticamos o velho ditado que diz: «manda quem pode e obedece quem deve»!
Simbologia e outras impressões de Portugal no olhar dos chineses e macaenses: Uma experiência concreta
A experiência foi realizada com estudantes na sua grande maioria vindos de Macau e da China do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa no ano letivo de 2015/2016, de nível Avançado do Curso Geral de Português, na disciplina de Portugal através dos Média. As imagens culturais resultantes destes orientais, sobretudo dos chineses e dos macaenses1, concordam, em grande medida, com as de muitos estudiosos portugueses que possuem um olhar atento em relação à sociedade portuguesa.
Os aspetos culturais salientados nas imagens construídas, tanto os positivos como os negativos, são retirados de diários que foram sendo elaborados a título de tarefas caseiras ao longo do primeiro semestre do referido ano letivo. Estes foram redigidos em estilo autobiográfico, contendo as impressões dos alunos sobre a prosperidade ou a pobreza, o engenho ou a falta do mesmo, as festas, a família e o sistema socipolítico português, tendo sido posteriormente organizados e divididos em oito áreas temáticas: Gastronomia; Simbolismo; Impressões; Tradições e/ou Hábitos; Geografias; Migrações; Filosofia e Utopia.
Assim, aos seis aspetos culturais analisados anteriormente se vêm juntar mais oito relativos às áreas temáticas pesquisadas.
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Comecemos pela gastronomia, e pelas imagens gastronómicas suscitadas em Macau, onde como já foi referido, sobressaem as diferenças culturais, mas com a introdução de um novo e importante dado para análise, vindo da parte dos alunos macaenses, quer pertencentes à comunidade chinesa stricto sensu quer à que constitui a dos portugueses do Oriente, os filhos da terra macaenses. Distingue-se então uma gastronomia de fusão que vai desde os pastéis de nata às mais diversificadas misturas com paladares de antigos territórios portugueses, criando uma cozinha típica da Região Especial que contrariou as expetativas de os estudantes a poderem vir encontrar em Portugal. Diz-nos Francisca (Lam Iok Heng, T18, Macau, 2 de outubro, 2015):
“Os pratos macaenses sofreram influência da culinária de vários países, e alguns vieram de países lusófonos. Pensava que a Galinha à portuguesa, o Joelho de Porco Assado com mel, a Galinha à Africana eram pratos típicos de Portugal. No entanto, reparei que aqui não existem, pelo menos com esse nome.”
Pelo que quando é dada aos estudantes a possibilidade de escolherem entre gastronomia da diferença total ou aquela que advém do cruzamento de culturas, optam pela culinária da fusão, a que lhes traz saudades e os transporta à terra natal ou onde vivem há longo tempo. O que acaba de ser afirmado não pode deixar de conduzir à questão de saber quem considerar macaense. Não pretendendo entrar por esse campo, de alto valor sociológico, mas lateral ao estudo, há no entanto a especificar que aqui se incluem nesta categoria todos aqueles que nasceram em Macau, fruto do encontro dos portugueses com chineses ou outras etnias asiáticas, ou ainda, os que vindos da China, aí vivem há longo tempo.
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À gastronomia da fusão, segue-se um conjunto de figuras simbólicas portuguesas, distinguidas por estes alunos chineses e macaenses, que mantêm um laço interessante com a tradição, já que ainda hoje são apontadas grandes figuras do futebol, e sobretudo Cristiano Ronaldo, tal como na tradição sucedera com Eusébio ou Amália Rodrigues. Também o fado aparece como símbolo cultural de eleição, mas não ligado a um qualquer fadista em particular. As áreas culturais mais referidas, pela positiva, são as que dão origem aos três “Fs”: Fátima, Futebol e o Fado. O futebol encarnado na figura simbólica de Cristiano Ronaldo, muito enaltecido como o melhor jogador do mundo, é ainda pretexto para mostrar como os portugueses não podem receber o rótulo de preguiçosos, muito negativo a olhos chineses, já que o CR7 é a prova viva do contrário.2
São ainda mencionados símbolos artísticos como a filigrana ou o azulejo. Entre os trabalhos simbolicamente mais relevantes encontram-se as obras em azulejo e filigrana, cujas tradições são enaltecidas, surgindo o nome da artista Joana Vasconcelos associado a esta última arte, em “Coração Independente Dourado” de 2004.3
Há ainda outros símbolos físicos tão palpáveis e concretos como os cafés, ponto de encontro duma cultura que elege o exterior como espaço privilegiado do lazer. Há, porém, um símbolo na mira de chineses e macaenses, mais que geográfico, assume um valor cultural incondicionado em Portugal: o mar, ou melhor, o espírito do mar. Este, enquanto espaço de aventura e descoberta, conduziu os portugueses a todos os cantos do mundo; segundo Minga (Zhou Liumin, T18, China, 11 de outubro, 2015):
“Foi por causa dos descobrimentos que os portugueses lançaram e que tiveram origem nos desejos impregnados na alma de se aventurarem. Hoje em dia há milhões na diáspora, que têm sido inspirados pelo espírito do mar que anima este povo, sempre pronto a descobrir mundos diferentes.”
E se hoje somos um povo de emigrantes, e por alguns chineses considerados os ciganos da Europa, tal se fica a dever, na leitura destes estudantes, à absorção do espírito do mar que nos anima e orienta para e pelo mundo, numa descoberta incessante de novos povos e suas culturas.
Pão tipicamente português e baozi chinês
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No que respeita às impressões de Portugal, vemos desenhar-se um aspeto cultural levemente racista, porque, dizem eles, os portugueses no contacto com os outros povos, além da imagem que transmitem, já referida, um tanto superficial e simpática nos relacionamentos, manifestam um certo racismo sobretudo ao estabelecerem contacto com asiáticos e africanos. É ténue, não é grave nem mortal, mas incomodou alguns destes estudantes. Diz Clara (Ho Hio Teng, Macau, 24 de outubro, 2015):
“Mais duma vez, fui discriminada pelos portugueses. Eles apontaram-me o dedo, mas apenas passei na rua sem fazer nada de ofensivo. Houve um português que nos sugeriu o regresso à nossa terra, deixando Portugal de vez. Outro fez os olhos dele mais pequenos para nos incomodar, visto que somos asiáticos e temos olhos de dimensões mais reduzidas.”
E a aluna acrescenta que muitos dos países ainda estão a lutar por condições sociopolíticas semelhantes às que se vivem na Europa, pelo que remata quanto a expressões racistas: “A liberdade de expressão é muito valiosa, há imensos países que ainda estão a lutar por ela. Espero que as pessoas com este direito o possam valorizar, sem o desperdiçarem em algo estúpido.” (Ibidem).
Há quem vá mais longe considerando que este tipo de racismo se pode encontrar por toda a Europa, abrangendo também árabes. Contudo, a maioria dos estudantes prefere saliantar a costela simpática e inclusiva dos portugueses.
Os valores, saídos das revoluções americana e francesa são no geral enaltecidos e considerados importantes, sobretudo no que se refere à educação, sendo muito sentida a pressão que as crianças e jovens chineses sofrem numa sociedade altamente competitiva, o que, na perspetiva de muitos deles, torna os meninos infelizes por não terem o tempo de lazer necessário a um desenvolvimento equliibrado. Também a posição de mulher portuguesa na sociedade é vista com muito agrado e louvado o seu estatuto profissional e independente do marido no casamento. Muitos estudantes veem como algo de positivo as mulheres não abdicarem da sua personalidade e contribuírem economicamente para a família. É ainda salientado o facto de quanto ficam sozinhas, continuarem a lutar. Há até quem coloque a hipótese de a futura presidência da república portuguesa ser entregue a uma mulher.4
Entre as impressões mais negativas conta-se a provocada pelas greves. Os estudantes, embora reconheçam o valor dos sistemas políticos ocidentais, parecem pouco dispostos a aceitarem as consequências práticas dos mesmos. Pelo que as manifestações e as greves, sobretudo em setores-chave como a educação e a saúde, são resssentidas como abusivas e destabilizadoras da ordem e harmonia sociais. É ainda na relação dos portugueses com o trabalho que surgem impressões e imagens mais negativas. Os estudantes chineses não percebem por que razão os portugueses não possuem atitudes ativas, por exemplo, quando perdem o emprego e como reação se põem a dizer mal do governo ou vão passear para a praia, como se nada fosse.
Mais? Grande é ainda a impressão provocada pela beleza e limpeza do metro de Lisboa, cujas estações são consideradas verdadeiras obras de arte para as quais grandes nomes de artistas portugueses têm vindo a contribuir, criando uma excelente e muito aprimorada impressão artística nos estrangeiros em geral e nestes estudantes chineses em particular.
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Na produção de imagens relativas a hábitos e tradições distinguem-se, além dos hábitos gastronómicos do café a Ocidente e do chá a Oriente, ou da vontade de partilha física, económica e espiritual, à mesa chinesa, versus o individualismo português, o consumismo que se estabeleceu no Oriente, sobretudo em Macau e na China em torno das principais festividades ocidentais, tais como o Natal.
É construída ainda uma imagem positiva em torno do civismo português, visto como um hábito altamente salutar e expresso, de acordo com estes estudantes, na paciência com que os condutores tratam os peões nas ruas. Célia (Chan Un Man, T 17, Macau, 5 de dezembro, 2015) refere-o por contraste à aventura em que se transforma atravessar uma rua em Macau:
“Pelo contrário, os condutores portugueses normalmente têm muita paciência, ou seja, estão muito educados em termos de condução. Além de pararem sempre nas passadeiras, às vezes deixam os pedestres passar embora o semáforo esteja verde. Lembro-me duma vez que o condutor não me viu, e depois de ter passado, parou e me pediu desculpa.
Acho que este é um hábito que vale a pena ser seguido pelos condutores do mundo inteiro.”
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Que imagens culturais nos revelam estes estudantes chineses da geografia portuguesa? Quais os símbolos geográficos que distinguem? Dentro da geografia humana, encontramos na linha da frente, a paisagem arquitetónica em honra dos Descobrimentos, tal como a Torre de Belém ou o Padrão dos Descobrimentos. Mostram ainda grande propensão para valorizar meios de transporte como o Ascensor da Glória, que os conduz a um Portugal antigo com uma cultura diversificada, além de apontarem para cafés e esplanadas que normalmente contrapõem às casas de chá chinesas. Referem ainda a calçada portuguesa, apelidada uma verdadeira obra de arte. Calçada esta que muitos deles já haviam encontrado em Macau, sob administração portuguesa por mais de 400 anos, como refere Kathy relativamente ao Centro Ecuménico de Kum Iam, arquitetado por Cristina Leiria pouco antes da transição de Macau para a China, e acrescenta uma reflexão sobre a importância de prevalecer uma ordem mundial pacífica.5 O facto de a Região de Macau ter estado sob administração Portuguesa deixou as suas marcas no terreno, ainda que Portugal saia a ganhar por ser menos poluído, já que a poluição é uma preocupação constante na geografia mental destes alunos. Diz-nos Clara (Chan Hoi Leng, T17, Macau, 5 de dezembro de 2015):
“Lisboa faz-me recordar o ambiente anterior de Macau. Dantes o Território também possuía ar fresco, céu limpo e tranquilidade. Ontem li uma notícia sobre a poluição do ar em Portugal, a qual será a causa de maior número das mortes no futuro. Mas o país ainda consegue manter a qualidade do ambiente, sendo uma terra confortável e maravilhosa. Acho que os portugueses devem preocupar-se com este problema.”
Também o tempo é considerado uma verdadeira bênção divina6, que fica gravada em turistas de todo o mundo, não escapando os chineses à regra. Estes têm vontade de regressar a Portugal só para poderem contemplar o magnífico azul do céu.
A cidade de Lisboa é ainda considerada pela grande maioria um excelente sítio para se viver pela calma, paz e qualidade de vida que proporciona, difícil de encontrar em muitos países asiáticos, ainda que algumas cidades chinesas, como Tianjin, nas palavras duma das alunas tianjinenses, simultaneamente professora no Instituto Confúcio, se lhe possa comparar7.
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As imagens culturais relativas à migração, e portanto ao acto de viajar, bem como às oportunidades que proporciona, não podiam ser mais positivas. Viajar permitiu a muitos destes estudantes abrir horizontes, favorecendo oportunidades existenciais únicas. Porque vieram até Portugal, puderam escapar à rotina de acabar o curso e imediatamente começar a trabalhar, a fim de comprar casa e constituir família. Como tal, por viajar podem entrar em contacto com modos de vida diferentes, sendo os Estados Unidos da América também apontados como um exemplo de excelência para se cultivar formas alternativas de estar, pouco conservadoras, até do ponto de vista sexual, que lhes permite encontrar formas distintas da organização familiar tradicional.
Mas os portugueses situam-se em primeiro plano no olhar destes estudantes por serem viajantes eméritos susceptíveis de conceder ótimos exemplos de vida. Eles quando não viajam, leem, dando verdadeiras lições de vida a uma geração de chineses e macaenses condicionada pela informática e seus múltiplos jogos. Alguns dos alunos chineses referem o ter vindo até Portugal como motivador da reaprendizagem do hábito da leitura. Um dos alunos, Mário (Hoi Tang U, T18, Macau, 20 de novembro de 2015) encontrou mesmo a possibilidade de classificar a sociedade portuguesa segundo a etiqueta “3 Ls”: São “Os “3 Ls” mais representativos da comunidade portuguesa, a saber: Leite, Leitura e Ladrão.”
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Os estudantes chineses e macaenses parece privilegiarem os valores transmitidos pela filosofia ocidental. Consideram os nossos idosos muito mais desportistas do que os chineses e pensam que fazer desporto prolonga favoravelmente a vida dos mais velhos8. Também apreciam o facto de os ocidentais estarem menos preocupados em comprar casa e constituir família, parecendo tirar melhor partido da vida por não se preocuparem tanto com o trabalho e com as questões financeiras9.
A poluição na China e em Macau é uma preocupação constante nestes estudantes, o que os leva a defender valores filosóficos ecológicos, formando uma imagem cultural muito positiva dos portugueses neste domínio.10
Grande Ponte Hong Kong, Zhuhai e Macau.
A cognição cultural é a ponte para a aproximação de sociedades de características culturais diversas
Um outro aspeto cultural muito valorizado é a globalização, pelo que os estudantes chineses consideram hoje menor a diferença cultural entre ocidentais e orientais, ainda que com um predomínio dos valores dos primeiros sobre os segundos, ou seja, a globalização segue o padrão ocidental. Segundo Emily (Huang Jingting, T18, China, 15 de outubro de 2015):
“Um dia comum dum cidadão duma metrópole qualquer pode ser assim: Levanta-se quando o despertador do Iphone toca. Depois de tomar um duche com champô de P&G, toma um copo de café da Nestlé. Conduz até ao trabalho no seu Mercedes, onde almoça. Compra um cheeseburger no McDonald’s que engole na frente de um computador Mac. Para jantar, convida os amigos por whatsapp e juntam-se todos num restaurante duma grande cadeia. Acaba dia deitado numa cama do IKEA.”
Resumindo, atualmente pensamos quase todos da mesma maneira, porque há um modo de vida geral que aceitamos, muito condicionado por um determinado modelo económico, que nos padroniza, mesmo inconscientemente, pelo que os estudantes se sentem muito próximos uns dos outros, sejam asiáticos, europeus, africanos ou americanos: grande parte aspira ao mesmo, dentro e fora da escola ou no trabalho: estarem ligados a uma qualquer rede informática, terem muitos amigos online e inúmeros apetrechos informáticos, de computadores a iphones, passando pela comida simples e rápida, bem como por casas práticas e funcionais.
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Por fim, conclui-se com um sonho utópico, expresso por um chinês, acredito que partilhado por muita gente ao longo dos tempos, que é o desejo dum mundo pacífico, harmonioso, espontâneo e não hierarquizado, evidenciando uma ordem fraterna e universal, tal como é descrita por Jesse (Jianxin Guo, T21, China, 15 de janeiro, 2016):
“Os países e governos desaparecem, a Terra é casa para toda a gente; o dinheiro e a propriedade privadas desaparecem, ninguém trabalhará para viver por não ser necessário fazê-lo. Haverá máquinas que o fazem perfeitamente por nós. Ninguém terá problemas de alojamento ou comida, as pessoas podem trabalhar, mas só por amor ou para gozar a vida. As cidades e a família desaparecem, porque haverá novos meios de transporte que podem levar as pessoas para qualquer sítio da Terra num segundo, e toda a terra será uma família (...) Na utopia, vive-se mais de 1000 anos (...) Ninguém come carne, toda a gente é vegetariana, mesmo os animais são vegetarianos, por exemplo, os tigres, leões entre outras feras só comem vegetais, as pessoas e animais vivem em harmonia e felicidade.”
Seguindo o raciocínio de Jesse, seria bom que nos tivéssemos na mira um dos outros não para nos rotularmos ou dispararmos uma série de preconceitos e ideias feitas, mas para que nos procurássemos entender cada vez melhor, para convivermos o mais perfeitamente possível, no respeito uns pelos outros, dum modo vário, global quanto baste, em que a única postura de facto universal fosse de aceitação dos outros e suas maneiras de ser e de pensar. Acreditamos que o presente artigo é mais um passo conjunto nessa direção.
1 Havia outros estudantes no curso, vindos de diferentes partes da Ásia, da América do Norte e do Sul, de África e do Médio Oriente, ainda que se encontrassem em minoria, além de não constituírem fonte de produção de imagens culturais relevantes para o domínio do presente estudo centrado em Macau e na China.
2 Mário (Hoi Tang U, T18, Macau, 10 de outubro, 2015): “Não concordo que os portugueses sejam preguiçosos. O Cristiano Ronaldo já o provou e ele é um exemplo para incentivar as pessoas que tentam alcançar os seus objetivos.”
3 Ester (Un Pui Seong, T18, China, 25 de outubro de 2015) “Já em Portugal e no século XXI, a artista plástica Joana Vasconcelos recorreu ao imaginário da filigrana para elaborar uma obra de arte chamada Coração Independente Dourado, em 2004, por isso vejo que a tradição da filigrana continua viva no país.”
4 Lisa (Guo Li Sha, T18, China, 1 de novembro de 2015): “É possível que o próximo presidente de Portugal seja uma mulher!”
5 Kathy (Lam Ka Man, T21, Macau, 3 de outubro de 2015): “Após a segunda guerra mundial, os países colonizados foram-se tornando independentes. Em 1999, a soberania de Macau também foi transferida de Portugal para a China. Desejo que, de agora em diante, não haja mais guerras nem colonizações. Todo o mundo pode aprender a respeitar diferentes culturas e religiões de todas as raças.”
6 Ester (Un Pui Seong, T18, China, 22 de novembro de 2015) “Ontem, perguntei a uma amiga minha que já regressou à Malásia se ela tinha saudades de Portugal. Ela respondeu-me que estava com saudades do clima. Acho que é certo que as pessoas, seja o povo, sejam os turistas, todos gostam muito do clima. Mal chegam aos países deles querem regressar a Portugal. E, sim, o clima português é um símbolo do país e uma benção de Deus.”
7 Júlia (Wang Guangzhu, T17, China, 13 de outubro, 2015): “Penso que Tianjin e Lisboa têm muitas semelhanças, ambos os lugares são tranquilos, sendo adequados para viver. Muitos amigos de cá me disseram que Lisboa é uma cidade muito pequena. Porém, para mim, Lisboa é todo um mundo. Porque aqui o ambiente é agradável, há árvores e flores em toda parte, além disso, o rio Tejo e o mar atraem-me muito. Gosto imenso das praias em volta da cidade, tipo Cascais.”
8 Mário (Hoi Tang U, T18, Macau, 30 de novembro de 2015): “Depois de voltar para Macau, vou partilhar o dia-a dia dos idosos portugueses com o meu avô, para o convencer a começar a fazer mais desporto e a lutar pela longevidade.”
9 Kathy (Lam Ka Man, T21, Macau): “Quando comparo as sociedades ocidental e oriental, vejo que a sociedade ocidental não dá tanto ênfase aos resultados da escola e aos valores familiares como sucede no Oriente. Os pais encorajam os filhos a aprender com a vida diária, e não só nos livros escolares. Embora o dinheiro seja muito importante na nossa vida, acredito que a vida é para ser vivida, e não só para ser sobrevivida.”
10 Pedro (Chan Hangbin, T17, China, 30 de outubro de 2015): “Comparando com os países europeus, como Portugal, o governo de Macau tem muitos menos sensibilidade para a proteção ambiental e não tem uma atitude ativa para a implementação de políticas relevantes.”
Referências Bibliográficas
FOK, K. C. (1987). Early Ming Images of the Portuguese, Portuguese Asia: Aspects in History and Economic History (Sixteenth and Seventeenth Centuries), P. Ptak (ed.), Suttgart: Franz Steiner Verlag Wiesbaden GmgH.
Turmas 17, 18 e 21: Diário de Bordo do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa da Faculdade de Letras de Lisboa para o mundo no ano letivo de 2015/2016. Coordenação de Ana Cristina Alves.
Severino Cabral
Diretor-Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de China e Ásia-Pacífico-IBECAP
“Há lugares que surgem à nossa atenção como topologias privilegiadas, no Mundo e na História. E são, muitas vezes, aqueles pequenos pontos no mapa favorecidos pela sintonia do factor geográfico com o factor político. Macau foi, e continua a ser, um desses pontos.” A Direção do IIM, in “Macau – puente entre China y America Latina”.
Camões: "Já no largo Oceano navegavam,/ As inquietas ondas apartando; "(Os Lusíadas, I, 19).
Agostinho da Silva: "Creio, por mim, que o fará; mas que o vai fazer na própria vida: não teremos desta vez páginas de livros, mas tipos humanos: o que vai dar uma oportunidade única a povos para os quais foi a vida sempre o mais importante: China, Índia, Península (Ibérica), América do Sul" ("Filosofia Nova", Convergência Lusíada, p. 361).
Nau portuguesa.
O acontecimento da abertura das rotas oceânicas do comercio e da navegação mundiais, com o feito épico lusitano do domínio do Atlântico e do Índico, inaugura uma nova época para o conjunto da humanidade. Sob inequívoca liderança lusa foram construídas as bases do mercado mundial ao universalizar-se a troca e o intercambio de bens e cultura entre o Novo e o Velho mundo. Essa conquista só é comparável, pelo efeito de transformação nos destinos de todos os povos e todas as nações do mundo, ao que se passa em nossa época com o fenômeno da soi-disant “globalização econômica e financeira”, ao mudar em sua totalidade o ambiente social, político, econômico, tanto quanto científico e cultural da humanidade hodierna.
Vivemos a grande transformação da cena mundial contemporânea decorrente entre outros fatores, de um lado, da continuidade da Revolução Cientifico Tecnológica – da idade atômica à era espacial, e da revolução da comunicação até o desenvolvimento das ciências da vida –, de outro, da emergência de grandes espaços continentais e populacionais no Oriente – China e Índia – e, no Ocidente extremo, da América Lusa.
Neste horizonte do começo de século e de milênio sobreleva o extraordinário crescimento e desenvolvimento da China que, por sua dimensão particular de um “megaestado” continental e marítimo – como centro mundial de poder – não só instaura uma nova realidade econômica e política internacional, como aponta para a emergência de uma nova ordem mundial multipolar.
A ascensão da China no mundo de hoje não surpreende quem conhece a his- tória da civilização e da nação chinesa. Como também não surpreende que a relação da China com o Ocidente moderno tenha sido inaugurada pelo encontro com a Nação Lusa, sua língua e cultura. Como é conhecida, a saga da aventura lusitana se estendeu a todos os mares e todos os continentes.
Estátua de Jorge Álvares, em Macau.
Hoje, distanciados no tempo, podemos ver que a viagem do navegador Jorge Álvares ao estuário do Rio Pérola, a mando de Afonso de Albuquerque, faz parte da extraordinária epopéia Lusa de redescoberta do mundo pelo Extremo Ocidente. Esta viagem inaugura o dialogo Ocidente e Oriente pelo lado português.
Pouco mais adiante, em 1557, seria cristalizada, esta relação, pelos séculos a vir, com a fundação de Macau. E, assim, por cinco séculos, Portugal – a Grande Potência Marítima do Ocidente –, inseriu-se na paisagem chinesa. Misturou-se a ela, em cultura e afeto, com um laço por todos os tempos jamais desfeito: um pequeno rincão da China foi e permanece definitivamente marcado pela luz da civilização lusitana.
De tal maneira que, como um fato gerador de futuro, no dia 20 de dezembro de 1999, nascia a Região Especial Administrativa de Macau, na China; pequeno acontecimento altamente significativo do final do século XX. A partir dele muitas transformações adviriam no contexto internacional, desafiando a capacidade e o talento inovador do homem de Macau para gerir com autonomia, e criar um ambiente único de encontro do Ocidente com o Oriente.
Luís Vaz de Camões.
A aventura lusa abriu o caminho das rotas oceânicas do mundo, gerando o mercado universal contemporâneo; tal feito está na origem do fenômeno da soi-disant “globalização”. Esse fato está definitivamente retratado na imortal epopéia camoniana. A poesia de Camões, autor maior da língua portuguesa é testemunho vivo da trajetória seguida pela gente lusitana, que construiu o Brasil, a África e a Ásia como pátria humana comum. A literatura de língua portuguesa independente do acento que exiba – metropolitano, americano ou ásio-africano – representa, ontem como hoje, o que de melhor o mundo lusitano e a sua cultura integradora e universalista inspirou, em diferentes épocas da história, à humanidade ocidental.
Ambiente único de encontro da cultura singular do Ocidente Latino, baseada na língua do povo português; e, no mesmo sentido, com a cultura mater do Oriente Sínico, baseada na língua do povo Han. Acontecimento histórico que se amplia a uma dimensão global, dado o tamanho da população de 260 milhões de luso-falantes, que integra a comunidade de países de língua portuguesa, presente em todas as regiões do mundo, e, de outro, a língua chinesa e o maior ecúmeno nacional do mundo. Lugar, pois, nuclear do encontro de duas culturas de significado especial para o Brasil, porque baseadas na extensão universal das línguas de cultura chinesa e portuguesa.
Mas a língua portuguesa não teria essa dimensão se não fora o reconhecimento do fenômeno ao qual, um dia, o gênio de Fernando Pessoa denominou “o grêmio da língua portuguesa”: o fato de que o Brasil e os países que compõem a Comunidade da Língua Portuguesa têm uma mesma língua de cultura e basicamente formam um mesmo processo civilizatório. Uma língua de cultura universal a qual, como os padres da Companhia de Jesus revelaram ao mundo, formava um par criador com a outra língua universal da cultura humana: o idioma chinês.
O começo dos tempos modernos assistiu ao povo lusitano inaugurar uma época da história da humanidade baseada no sistema internacional fundado no comércio e na interação entre povos e civilizações: os descobrimentos das rotas oceânicas do mundo, a unir pela primeira vez todos os continentes e todos os meios de riqueza e poder do homem, fruto da grande aventura marítima de Portugal, talvez só tenha símile na conquista do cosmos da nossa época.
Quando brasileiros exaltamos a grande conquista do povo português é porque ela não pode ser esquecida pelo que significou para o destino nacional do Brasil. Sem a epopéia portuguesa dos Descobrimentos não haveria a nação brasileira tal como é conhecida de seus filhos e de todos os demais povos do mundo contemporâneo. Só por isso se justificaria a grande aventura do espírito luso.
Vasco da Gama.
Ela pode ser inda hoje medida pela construção ainda incompleta do outro Brasil – o Brasil africano – legado a ser realizado no futuro pelos países que formam a Comunidade de Língua Portuguesa na África.
Além da África, a Índia e a China foram também tocadas pela presença lusa na língua e na cultura. Desse modo podemos dizer que todo o mundo civilizado foi unido pela língua portuguesa: uma língua universal pela riqueza de sua expressão e pelo âmbito que ela criou.
A importância da conquista lusa das passagens do Grande Oceano, que banha o Hemisfério Ocidental, a África e a Ásia, residiu, sobretudo, na aven- tura de levar aos continentes mais distantes a fé cristã e a nova ciência da natureza, que veio a substituir o cosmos do mundo antigo pelo universo infinito da era moderna.
Foi essa passagem do Ocidente ao Oriente que permitiu a Índia e a China se integrarem ao mundo da modernidade e se introduzirem no sistema industrial e urbano que da Europa se estendeu a todo o mundo.
Um símbolo vivo dessa relação do mundo lusófono com o Oriente tem sido a cidade de Macau que, fundada em 1557, permaneceu administrada por Portugal até 1999, num arco de tempo que foi dos começos da época dos descobrimentos até ao término do segundo milênio da era cristã.
No momento em que a China inicia nova e decisiva etapa de sua mo- dernização, orientada pelo sonho chinês da revitalização nacional, ao construir as bases da retomada do crescimento da economia global, com a criação da gigantesca infraestrutura a ser gerada pelo projeto do “Cinturão e da Rota Marítima do Século XXI”, assistimos à reconstrução estratégica das rotas antigas do comércio do Velho Mundo. Esta é uma grande e inovadora iniciativa chinesa que motiva e inspira a todos os países do Velho Mundo a reconstituírem a antiga rota do comercio mundial que uniu outrora o Império Romano ao mundo Sino e Indo-Persa.
No entanto não se pode deixar de pensar que a economia global não se sustentará apenas na reconstrução dessa antiga rota do comercio internacional, mas sim irá necessitar da complementação pela reassunção do mundo criado pela abertura da rota do Cabo, por Vasco da Gama, e da Circunavegação pelo Sul do continente americano, empreendida pelo navegador português Fernão de Magalhães, a serviço de Espanha. Essas duas épicas viagens, na aurora dos tempos modernos, estabeleceram a ligação Pacífico, Atlântico Sul e Índico, no conjunto denominado por Sir Halford Mackinder de “Grande Oceano”.
Parece que, se vier a se estruturar esta segunda grande rota de comercio internacional – a Carreira das Índias e a Carreira do Pacífico –, ela deverá tornar-se essencial ao reerguer-se da Economia Global. Como também deverá se tornar por meio dos múltiplos pólos de poder um sustentáculo do equilíbrio do poder numa época de intensas mudanças na ordem mundial.
Pedro Álvares Cabral.
O começo do século XXI e do Terceiro Milênio está a configurar o nascimento de nova e complexa ordem mundial, na qual a parceria es- tratégica de dimensão global dos países lusófonos dará caráter de sustentáculo, pilar, socle, ao sistema internacional multipolar. O poder meridional que emergirá com a integração do espaço sul-americano mais o cone austral africano tornará o Brasil, país central do mundo lusófono, o primeiro estado “tri-oceânico”, que deverá, junto com a China e Índia ser um dos pilares da nova ordem mundial (global).
A realização desses projetos nos revela também o fato de que Macau não só deverá acompanhar o ritmo acelerado de desenvolvimento chinês como vir a se tornar uma plataforma de cooperação e intercâmbio da China com o mundo de fala portuguesa em todos os continentes. Caberá aos outros membros da comunidade de língua portuguesa um esforço a mais, na linha antecipada pelos clássicos eternos da língua portuguesa para ampliar essa plataforma ligando todos os “lusitanisados” do mundo ao universo cultural sínico, e assim abrir o passo para entrada da humanidade do terceiro milênio na era da “nova mundialidade”.
Bibliografia